
A historiadora e escritora baiana Luciana da Cruz Brito lança nesta sexta-feira (19) o livro “Reparação: memória e reconhecimento”, obra organizada por ela que reúne reflexões sobre políticas antirracistas e caminhos para reparar séculos de violências históricas, somando-se às demandas por justiça e igualdade. O lançamento acontecerá às 19h, no Zumví Arquivo Fotográfico, no Pelourinho, e contará com a participação dos escritores Alex de Jesus e Valdecir Nascimento.
Com apresentação da autoridade religiosa Ebomi Cici de Oxalá, posfácio inédito da própria organizadora, ilustrações de Mayara Ferrão e QR Codes que dão acesso a vídeos de momentos cruciais do seminário que inspirou a publicação, o livro propõe uma imersão no pensamento negro contemporâneo.
“É importante dizer que todas essas pautas que são discutidas no livro, no sentido da memória, no sentido da reparação histórica, elas são resultado de uma longa participação de mulheres negras no Movimento Negro Brasileiro, na política brasileira, na intelectualidade brasileira que pensou e que pensa o que é o Brasil”, afirma Luciana Brito ao Portal Umbu
Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Luciana Brito tem trajetória marcada por pesquisas sobre escravidão, racismo e resistência negra no Brasil e nas Américas. Formada pela UFBA, mestre pela Unicamp e doutora pela USP, com estágio na Universidade de Nova York, também foi pesquisadora visitante em Harvard, no Trinity College e na City University of New York. Entre suas principais obras estão ‘Temores da África’, vencedor do Prêmio Thomas Skidmore, e ‘O Avesso da Raça’, que analisa o trânsito atlântico de ideias sobre escravidão, raça e cidadania no século XIX.
Em entrevista ao Portal Umbu, a autora falou sobre o processo de elaboração da obra, a importância da memória como instrumento de luta e o papel da juventude negra na construção de um futuro igualitário.
O livro nasce de um seminário realizado em 2023, com rodas de conversa entre intelectuais, quilombolas, militantes e lideranças negras. Como esse processo coletivo de criação ajuda a construir um conceito vivo de reparação?
“Na concepção do seminário que contou com várias colaborações de intelectuais, quilombolas, lideranças negras, intelectuais, pessoas já conhecidas, como Valdecir Nascimento, Edson Cardoso, mas também novas militâncias, se a gente tomar como referência aqui a conferência de Durban, que foi em 2001, então a gente tem Galo de Luta, Selma Dealdina e outras pessoas que surgiram no cenário da luta anti-racista desse ano para cá. Nesse processo coletivo de criação do qual eu participo como co-curadora, convidada pelo Instituto Ibirapitanga, já que a equipe do Instituto também fez parte da concepção desse seminário, eu acho que a participação, a elaboração, a produção de um evento para pessoas negras, para discutir reparação histórica e que conta com a participação de pessoas negras da sua concepção à execução final, reflete muito bem aquilo que norteia as pautas por reparação, que é a importância de participação no momento de sentar na mesa e discutir as prioridades, pensar políticas, discutir o racismo, a participação de pessoas negras de diversos setores contando com a diversidade mesmo dentro das comunidades negras. Eu acho que, nessa concepção, nesse momento inicial de produção do seminário, a gente vê esse conceito de reparação vivo nessa participação de pessoas negras em todos os processos que envolveram a concepção e execução do seminário.”
Em um ano em que a Marcha das Mulheres Negras ocupará Brasília com o lema “Reparação e Bem Viver”, como a obra se soma a essa mobilização histórica?
“As mulheres negras do Brasil têm vivido muito mal. A despeito das conquistas que nós temos, quando nós olhamos para os índices de saúde, de feminicídio, do que as mulheres negras têm que fazer para garantir a sua educação, da sobrecarga de trabalho, da sobrecarga do trabalho doméstico, da garantia dos direitos do trabalho. Também no sentido de quem é que sofre os maiores impactos nos momentos de retrocesso de direitos e de cidadania e de democracia. As mulheres negras brasileiras têm vivido muito mal, então não há projeto político de democracia no Brasil sem que perpasse pela participação de mulheres negras e sem a existência de políticas públicas de combate às desigualdades e a as violências que não perpassem, que não levem em conta, o bem-viver de mulheres negras, que é o viver com dignidade, o viver com cidadania é o viver numa sociedade democrática. Se as mulheres negras que estão na base da maioria dos índices do Brasil, de saúde, de educação, de violência, se as mulheres estão bem, todas as pessoas nesse país estarão bem, as crianças estarão bem, os idosos estarão bem. Sem contar que nós estamos falando da maioria da população brasileira, que são mulheres negras. Então, o tema deste seminário contribui com o tema da Marcha de Mulheres Negras para Brasília, no momento que se soma ao esforço do Movimento de Mulheres Negras por exigir, demandar, um papel ativo nisso que se debate sobre a democracia do Brasil. Sem a participação de mulheres negras, ela não será plena, ela não será completa. E não só participação, mas também a existência de políticas que garantam o bem-estar, o bem-viver dessas mulheres, dessas idosas e dessas meninas que, como índice, se nós estivermos bem, toda a população brasileira estará bem também.”
Se memória e reparação estão no centro do livro, como esse acúmulo pode fortalecer as pautas que as mulheres negras levarão às ruas neste novembro?
“Toda pauta debatida nesse livro, a pauta da violência policial, a pauta da comunidade quilombola, a pauta dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, quando nós discutimos supremacia branca, quando nós discutimos a questão da garantia da democracia no Estado brasileiro e dos direitos humanos, em todas essas, mulheres negras, no Movimento de Mulheres Negras, no Movimento Negro Brasileiro, participaram dessa construção. Então, dentre outras coisas que esse livro faz, ao discutirmos essas pautas, nós estamos registrando e celebrando de todas as maneiras a participação de mulheres negras nos caminhos políticos do Brasil. É importante dizer que todas essas pautas que são discutidas no livro, no sentido da memória, no sentido da reparação histórica, elas são resultado de uma longa participação de mulheres negras no Movimento Negro Brasileiro, na política brasileira, na intelectualidade brasileira que pensou e que pensa o que é o Brasil. Nesse sentido, essa produção que está no livro é uma grande celebração à contribuição de mulheres negras à política brasileira, à agenda política brasileira. São as mulheres negras que estão hoje, o movimento social dos mais articulados para pensar política no Brasil e propostas de políticas públicas que contemplem todo o povo brasileiro, mas sobretudo a maioria da população que é inversamente representada na política partidária nos cargos públicos, a despeito dos avanços que tenham acontecido por conta da participação de mulheres negras nos movimentos sociais.”
Entre as muitas possibilidades de reparação discutidas da preservação da memória à indenização financeira —quais caminhos o livro e a marcha indicam como mais urgentes para o Brasil?
“Nós temos algumas pautas que são urgentes. Primeiro, é pensar que nós estamos sob ameaça das conquistas do Movimento Negro Brasileiro, dos movimentos movimentos sociais, para a população negra, que tem sido atacadas de diversas formas, tanto por má fé, quanto por incompreensão da importância das políticas públicas como referencial de políticas tanto no setor público, quanto no setor privado para a população negra, para reduzir as desigualdades e para combater o racismo. Então, a pauta da manutenção da democracia do Brasil, de políticas de combate à pobreza, de políticas de combate à violência, tanto a violência doméstica, o feminicídio, quanto o genocídio da juventude negra através da violência policial. Eu acho que essas são as pautas mais urgentes que foram discutidas no seminário, que nós podemos ver.
Na verdade, o seminário reflete aquilo que está sendo priorizado como urgente nos Movimentos de Mulheres Negras e que vai ser pauta principal em Brasília.”
O Bem Viver aparece como horizonte político da marcha. De que forma a obra também projeta alternativas ao modelo racista, capitalista e excludente?
“O que o Movimento de Mulheres Negras, o Movimento Negro Brasileiro tem defendido há muito tempo e que aparece em todas as falas no seminário, é dizer que uma sociedade menos racista, não é uma sociedade que vai privilegiar pessoas negras. Não é uma sociedade que vai tirar direitos das pessoas brancas. Uma sociedade menos racista, mais comprometida com o combate às desigualdades, é uma sociedade mais próspera, é uma sociedade menos desigual ou, por que não dizer, quem sabe, sem desigualdades. É uma sociedade em que todas as pessoas têm direitos e vivem com segurança, vivem bem e vivem em paz. Essa obra projeta modelos alternativos de se viver na sociedade brasileira, no território brasileiro e também fora do país, já que há convidadas e convidados de outros países, mais notadamente dos Estados Unidos, demonstrando como o modo de vida racista, supremacista branco, capitalista e excludente atual, tem gerado um esgotamento da sociedade, uma crise enorme. Nós vivemos numa sociedade violenta porque ela tem explorado ao máximo as desigualdades. Então, quem vive hoje privilégios no Brasil, esses privilégios custam saúde, educação, custam a vida, custam relações de trabalho saudáveis, custam direitos, custam a democracia no Brasil. As pessoas que estão colaborando nessa publicação e que participaram desse seminário, estão apontando como efetivamente uma sociedade que reconhece a importância das populações negras, a importância histórica dessas populações e o que foi feito em quase 400 anos de escravidão e do pós-escravidão. O que foi feito com a população negra nesse país tem deixado o Brasil pior e a ameaça à democracia, aos direitos, à cidadania no Brasil que tem um corte racial profundo, tem deixado a sociedade brasileira pior também.”

Para além da denúncia, o livro traz uma proposta de futuro. Que papel o público leitor, especialmente a juventude negra, pode assumir nesse chamado à reparação e ao bem viver?
“Pode assumir um papel protagonista, mas esse é um grande desafio, tanto de mobilização quanto de convencer a juventude negra, sobretudo a das classes populares, de entenderem que existem debates urgentes e dos quais dependem nossa vida, nosso bem-ver, sem distrações.”
Como foi o desafio de reunir vozes tão diversas de Conceição Evaristo e Valdecir Nascimento a Galo de Luta, de lideranças quilombolas a intelectuais internacionais, em um mesmo projeto editorial?
“O grande desafio foi manter integralmente todas as falas, de todas as pessoas, porque todas elas eram valiosas. Além disso, boa parte das pessoas convidadas não se conhecia, então foi muito importante observar todas elas tecerem, juntas, os pontos em que seus pensamentos se conectavam. Foi bonito ter um momento com algumas das lideranças mais importantes do Brasil pensando em um projeto de nação, identidade, política e futuro. Outro desafio foi manter a força das falas, e suas subjetividades, num texto escrito. Nesse sentido, o trabalho da editora Fósforo, junto com o Instituto Ibirapitanga, foi primoroso, pois as editoras que trabalharam no livro conseguiram manter a fidelidade das falas, mas também garantir que os textos contivessem as emoções, as ênfases, ao mesmo tempo que deixou a leitura fluida.”
O livro mistura texto, imagem e QR Codes com registros audiovisuais. O que essa escolha revela sobre a necessidade de construir memória também em múltiplas linguagens?
“Uma vez que foi uma estratégia editorial muito eficaz deixar de fácil acesso os vídeos das mesas do seminário, através do QRcode, a memória do seminário e o registro da participação e elaboração política e intelectual das pessoas, ficou garantida. Sobre isso, lembro particularmente de Nego Bispo, que ancestralizou logo depois do Seminário. Tivemos a honra e alegria de compartilhar aquele momento com ele e, através do registro, lembrar daquele dia e escutá-lo toda vez que quisermos e precisarmos.”
Entrevista: Adriane Rocha/ Reportagem: Jadson Luigi