
Enquanto iniciada para o orixá Oxumarê e usuária assídua da cachoeira, me posiciono como quem escreve sobre um corpo querido. Não um corpo abstrato, mas um corpo de água viva, memória ancestral e respiro espiritual para milhares de pessoas negras que atravessam a cidade todos os dias.
A Cachoeira de Oxumarê, situada no coração do Parque São Bartolomeu, é mais do que um recurso ambiental. Ela é território de fé, espaço de reencontro com a natureza e consigo, lugar onde a religiosidade de matriz africana pulsa com toda sua força e beleza. É também, nesse momento, um território em disputa.
O anúncio da construção de um teleférico na região, parte do programa municipal de mobilidade urbana, trouxe à tona uma série de inquietações. Com orçamento previsto de R$ 678 milhões, a obra atravessará áreas dos bairros São João do Cabrito, Plataforma e Pirajá, com o argumento de reduzir o tempo de deslocamento e integrar o Subúrbio Ferroviário ao restante da cidade. O modal, apresentado como sustentável e de baixo impacto ambiental, sobrevoaria parte do Parque São Bartolomeu a cerca de 45 metros de altura, segundo a Fundação Mário Leal Ferreira. A promessa é que a instalação das torres não afetaria as nascentes da cachoeira.
No entanto, poucas garantias técnicas foram apresentadas à população. Até o momento, não há de fácil acesso um estudo de Impacto Ambiental (EIA), nem Relatório de Impacto Cultural. Nenhum dossiê técnico que possa ser consultado por quem vive, cuida ou cultua esse espaço. Não houve audiência pública com lideranças religiosas por parte das instituições responsáveis pelo projeto. Não houve consulta às comunidades que formam, há séculos, esse território sagrado. A ausência de informação — ou melhor, a recusa institucional em compartilhar informações como sinaliza grupos ambientais e de proteção do parque é, por si só, um dado alarmante.
Essa situação não pode ser tratada apenas como uma lacuna administrativa. Ela é parte de uma estrutura mais profunda que estudiosos como Robert Bullard e Sueli Carneiro já identificaram como racismo ambiental: a prática de invisibilizar e desvalorizar territórios racializados no processo de tomada de decisões sobre o uso do solo, os investimentos e os chamados “projetos de desenvolvimento”. No Brasil, esse fenômeno se agrava quando o território em questão é negro, periférico e espiritualizado, como é o caso do Parque São Bartolomeu, Lagoa do Abaeté ou Dique do Tororó que se encontra cada dia mais seco e abandonados.
Essa não é uma denúncia no tom tradicional, é uma interrogação pública. O que significa “desenvolvimento” quando ele ameaça apagar memórias coletivas? Qual o custo espiritual de um teleférico que silencia o tambor? A quem serve a modernidade que se ergue sem ouvir as vozes que historicamente sustentam o chão da cidade?

O que está em jogo aqui não é apenas uma obra de mobilidade. É a reafirmação de que certas vidas e histórias continuam sendo tratadas como invisíveis no planejamento urbano. Que a fé negra ainda precisa se justificar para ocupar espaço. Que a natureza só é preservada quando alinha-se à lógica do consumo e do turismo.
A falta de posicionamento do Ministério Público da Bahia sobre o tema em questão, mesmo após mobilizações públicas, protestos e pedidos de esclarecimento aprofunda a sensação de abandono institucional e mostra a importância de colocar o ministério público no banco dos réus por omissão as questões raciais. Vereadores como Marta Rodrigues (PT) e Sílvio Humberto (PSB) foram os poucos eleitos que levantaram, em sessões plenárias, questionamentos legítimos sobre os impactos ambientais e simbólicos da obra. A população se manifestou. A resposta, até agora, tem sido o silêncio.
Tampouco encontramos declarações formais da SEPROMI — Secretaria de Promoção da Igualdade Racial — ou da SEMUR — Secretaria Municipal de Reparação a respeito do impacto da obra sobre os territórios religiosos de matriz africana que existem no parque ou denúncias feitas pelos protetores.
Organizações negras e de matriz africana, são outras que se mantém em total silêncio diante da situação. Onde anda a federação do culto afro e tantas outras que quando abre edital publico se reivindicam defensoras da questão religiosa? Todo esse silêncio causa estranhamento, especialmente porque o próprio Estado da Bahia e município tem avançado, em outras frentes, no reconhecimento de terreiros como patrimônio cultural e na valorização das expressões afro-brasileiras. Seria essa omissão uma contradição ou mais um capítulo do descompasso histórico entre discurso institucional e prática política?
O Parque São Bartolomeu abriga, além da cachoeira, praças dedicadas a divindades como Oxum e Nana que se encontra até hoje sem condições de uso, mas que ainda assim abriga áreas de mata atlântica remanescente e espécies nativas em risco. É uma Área de Proteção Ambiental (APA) instituída por decreto estadual desde 2001, e ao longo dos anos foi objeto de projetos de requalificação que buscaram fortalecer sua função ambiental, social e cultural. Em 2014, o governo estadual chegou a investir mais de R$ 180 milhões em obras de infraestrutura, urbanização e criação de um Centro de Referência de Cultura Afrodescendente que ninguém sabe para que serve.

O desafio nunca foi a falta de recursos, mas a continuidade das políticas e o reconhecimento de que se trata de um território complexo — onde espiritualidade, natureza e história caminham juntas com todos os descasos sociais que enfrentamos. Diante disso, a pergunta que se impõe não é se devemos ou não investir em mobilidade urbana. A pergunta é: por que projetos dessa magnitude continuam sendo concebidos sem a escuta das comunidades afetadas? Por que não é possível pensar desenvolvimento a partir das vozes e saberes que já existem nos territórios?
Em um momento em que o mundo discute a urgência climática, a justiça ambiental e o papel dos saberes ancestrais na preservação da vida, insistir em obras sem diálogo é andar na contramão da história. A justiça ambiental do século XXI exige mais do que infraestrutura: exige ética, escuta e reparação.
Talvez o maior impacto do teleférico, caso ele avance como está, não seja sobre o solo, mas sobre o simbólico. Porque ele confirmaria o que muitos já sabem: que, para o poder público, alguns territórios podem ser sobrevoados, mas não habitados. Podem ser vistos de cima, mas não compreendidos por dentro.
Oxumarê, orixá do movimento e do arco-íris, ensina que todo ciclo carrega em si transformação e continuidade. Que toda curva guarda um retorno. Que há beleza no fluxo. Que o progresso pode — e deve — conviver com a ancestralidade. Que nenhum futuro será sustentável se apagar as águas que nos ensinaram a atravessar.
Axé!