
A história de luta e emancipação é apenas uma das muitas similaridades entre Moçambique e Brasil, países que sobreviveram à colonização, se ergueram e que compartilham memórias, cicatrizes e esperanças. São essas as “coincidências” que aproximam a narrativa do escritor moçambicano Adelino Timóteo da realidade do público brasileiro.
Nascido em Beira, Moçambique, o autor desembarcou na Bahia no fim de julho para participar de festas literárias. Com 26 obras publicadas, Adelino é jornalista, graduado em Docência de Língua Portuguesa, artista plástico e Licenciado em Direito, e compartilhou um pouco da experiência em sua primeira vinda ao Brasil em entrevista ao Portal Umbu.
“É a primeira vez que venho ao Brasil. E a minha chegada à Bahia foi como voltar a um lugar de onde eu nunca saí. Encontrei pessoas cujos cheiros, cuja forma de ser e estar se identificam muito comigo, com as minhas origens, a África. É como se este Brasil já estivesse dentro do meu coração e da minha alma”, revelou o escritor.
Ao falar sobre a escolha de temas em sua obra, Adelino é categórico: a história é sua matéria-prima. “Eu adoro glosar sobre a história. Há um período fértil entre os anos 1500 e 1900, ao longo do Vale do Zambeze, marcado pelo encontro de culturas africanas, europeias e asiáticas. É nesse território simbólico que me sinto à vontade para narrar”, explica. Foi nesse contexto que nasceu a trilogia composta por “Os oito maridos de dona Luíza Michaela da Cruz”, “O Feiticeiro Branco” e “Cemitério dos Pássaros”.
Nas entrelinhas desses romances, o autor ilumina o poder feminino, um protagonismo muitas vezes silenciado na historiografia colonial. “Enquanto o Brasil tinha as suas ‘sinhás’, Moçambique também era dominado por mulheres poderosas. Quis resgatar esse legado e dizer que o império feminino existiu, sim, mesmo que tenha sido soterrado pela narrativa oficial”.
Quis registrar o tempo das grandes revoluções, dos sonhos de emancipação social, e também das frustrações que vieram depois
Ao abordar o colonialismo português, Adelino apresenta uma perspectiva crítica e desmistificadora. “A História fixa que Moçambique foi colonizado por 500 anos, mas essa presença não foi linear. Grande parte desse tempo foi marcada por guerras intestinas e conflitos entre estados africanos criados pela própria lógica da colônia. Para mim, Portugal ocupou de fato Moçambique por cerca de 100 anos”, afirma. Segundo ele, compreender esse processo é essencial para entender o presente inclusive fora da África.

Em sua análise, o autor destaca o papel dos jornais Brado Africano e O Itinerário, que nos anos 1920 e 1930 impulsionaram o pensamento nacionalista e anticolonial. “Ali surgiram vozes fundamentais como José Craveirinha, Noémia de Sousa, Marcelino dos Santos. São nomes que desmistificaram o colonialismo e abriram espaço para a literatura da libertação e para a própria luta armada”, contextualiza.
Mas nem toda literatura moçambicana está atrelada à militância direta. Adelino, por exemplo, escolheu outro caminho. “Antes de escrever, eu li muito. E logo risquei a possibilidade de engrossar o grupo de poetas da conjuntura revolucionária. Preferi abraçar uma poesia lírica, uma poesia do amor, mais centrada no humano do que no panfleto”, afirma. Ele também se distanciou da prosa ideológica. “Atraíram-me vozes como Ungulani Ba Ka Khosa, com sua escrita fora dos compromissos de esquerda. Também admiro Rui Knopfli e Mia Couto, que apontaram caminhos literários mais existenciais”.
A linha adotada por Adelino Timóteo pode ser percebida em “Nós, os do Macurungo”, seu terceiro livro lançado no Brasil pela Editora Rua do Sabão. A obra é ambientada em um território real, um bairro de mesmo nome na cidade de Beira, inspirado em sua infância, mas com dimensões imaginárias, e retrata as transformações sociais entre 1975 e 1990. “Criei Macurungo como metáfora de Moçambique inteiro. Quis registrar o tempo das grandes revoluções, dos sonhos de emancipação social, e também das frustrações que vieram depois”.
Aquilo que foi um movimento emancipacionista em Moçambique também pode ter combinado com um drama ou uma tragédia que a sociedade brasileira pode estar vivendo
O livro é um exercício de memória, mas também uma denúncia. “Enquanto no passado tínhamos um colono branco que oprimia, hoje temos um colono negro. São os próprios irmãos que, sob as leis herdadas do colonialismo, passaram a dominar os seus iguais”, denuncia.
“Preocupei-me por escrever e inscrevê-lo numa determinada época, ao mesmo tempo que passa uma imagem fotográfica de 1975 ao ano 1990. O interesse disso visa, mais ou menos, dar aquilo que são as nuances e das grandes revoluções, aquilo que são as ilações dos grandes projetos sociais emancipacionistas e isso também surgiu no Brasil. Aquilo que foi um movimento emancipacionista em Moçambique também pode ter combinado com um drama ou uma tragédia que a sociedade brasileira pode estar vivendo, uma vez que ela se inscreve sob a égide da justiça social, da plenitude do ser e da igualdade entre os homens. Esse aspecto divergente que marcou a sociedade moçambicana nos anos 1974, 1975, tem tido hoje os sinais mais visíveis de uma sociedade fraturada e injusta.”

O autor analisa que a crítica proposta por ele pode dialogar com o Brasil ainda pelo contexto das desigualdades sociais que manifestam como faces diferentes do racismo: “Temos uma sociedade avassalada pelo desespero. Um desespero que também pode estar assente no Brasil, com as suas diferenças sociais, com o racismo. Porque o racismo não é só marcadamente racial, do ponto de vista de preto e branco. O racismo econômico está presente”.
“No meu livro, eu falo das grandes filas para aquisição de produtos de primeira necessidade, da carência de roupa, da água, de luz, que de certo modo não era tangível na nova classe dos libertadores. Eles lá tinham os seus geradores, eles lá tinham a água importada, tinham comida ou lojas específicas para o seu abastecimento. Meu livro se inscreve dentro de um âmbito de injustiça social que tem se perpetuado até hoje. É basicamente isso que os leitores brasileiros e pessoas ligadas à África, mesmo vivendo no Brasil, podem sentir, porque a dor não tem raça. É uma dor comum que é alastrada a todos que vivem as consequências das injustiças pós-coloniais.”
Ela não sabia que aquela sede de leitura me levaria à terra de Jorge Amado e Vinicius de Moraes, lugares inimagináveis.
Voltando a falar sobre sua participação em eventos literários na Bahia, Adelino comentou sua passagem pela Festa Literária de Irecê (Flirecê), que terminou no último dia 3 de agosto, e revelou a alegria que sentiu ao ser recepcionado pelo grande público: “Foram dias assombrosos. Um banho de multidões, de gente que ama a literatura. Vivi aquela festa nos detalhes, na mistura de cores, de pessoas, de culturas. Vi no povo de Irecê o retrato de um Brasil que me emociona e me representa”.

A recepção calorosa do público baiano tem emocionado o escritor que relembrou momentos com a mãe enquanto repassava sua trajetória até a sua participação na Festa Literária Internacional do Pelourinho (FLIPELÔ), que acontece nesta sexta-feira (8). “É uma expectativa louca, como digo. Lembro de quando minha mãe me flagrou lendo um livro chamado ‘Seis Segundos para Matar’, de Brett Halliday, e disse: ‘as pessoas que leem muito não ficam boas da cabeça’. Ela não sabia que aquela sede de leitura me levaria à terra de Jorge Amado e Vinicius de Moraes, a lugares inimagináveis. Pena que ela não está viva para poder aferir dessa experiência e partilhar com ela que, mais aqueles livros que não me faziam bem da cabeça, me deram uma recompensa de poder conhecer o grande Brasil e também outro privilégio de poder lançar ‘Nós, os do Macurungo’ nesse chão, para mim, sagrado”.
Depois de passagens pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Adelino Timóteo participa de encontro na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) nesta quinta-feira (7). Na sexta-feira (8), conduz “Conversas Transatlânticas” às 11h, na Casa Motiva – Vale do Dendê, na FLIPELÔ, com mediação de Iuri Barreto. Já no sábado (9), às 10h, o escrito lança “Nós, os do Macurungo” na Casa do Olodum.