Diretora do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, Cintia Maria compartilha sua trajetória de resistência e liderança, os desafios de ser uma mulher negra à frente de uma instituição cultural e os projetos que têm transformado vidas por meio da arte e da memória

Nascida em Camaçari, Região Metropolitana de Salvador, Cintia Maria carrega em sua trajetória a força de quem transforma experiências pessoais em lutas coletivas. Diretora do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), ela compartilha sua história de vida, inclusive os desafios, conquistas e sonhos de uma mulher negra em posição de liderança.
Criada por mulheres negras em um ambiente rural, Cintia se define como uma “menina do interior” movida pela curiosidade, pela paixão pela leitura e pelo incômodo com as injustiças sociais desde a infância. Ainda criança, já atuava em ações sociais e chegou a ensinar pessoas em situação de escravização contemporânea.
“Desde muito cedo, eu sempre fui muito curiosa. Acho que essa questão da paixão pela leitura, pela literatura e também uma certa inquietude com relação às injustiças sociais, eu trago presente desde muito criança. Eu já fazia banca para ensinar as pessoas da região onde eu morava, ensinando as pessoas que trabalhavam — hoje eu tenho essa consciência — em um processo de escravização moderna, como muitas mulheres e crianças que vinham do interior para cuidar de outras crianças lá”, explica.
“Sempre gostei muito de contar histórias. Então, ainda que eu esteja na gestão, eu me vejo enquanto multiartista e uma grande contadora de histórias. Eu utilizo diversos formatos para contar essas histórias e, para mim, a arte tem um poder de transformação social. Eu uso a arte enquanto ferramenta para colaborar com essas transformações desde o início da minha trajetória.”
Formada em Jornalismo, sua trajetória profissional a levou à área cultural, onde aprendeu a importância da gestão e do posicionamento político. Trabalhando na Fundação Pedro Calmon, foi influenciada por nomes como Ubiratan Castro, Fátima Freitas e Zulu Araújo. Desses mestres, aprendeu a importância de buscar soluções sociais, valorizar os movimentos negros e conquistar recursos para a cultura negra.

Na liderança do Muncab, Cintia lida com o peso de ser uma mulher negra em espaços historicamente excludentes. “Ser uma mulher negra em posição de liderança exige de nós uma excelência muitas vezes cruel. Estamos sempre provando que somos capazes, enfrentando racismo, machismo e o peso de uma estrutura que não foi feita para nos incluir”, afirma.
Para ela, o museu é um instrumento de transformação social. Projetos como o “Porto dos Saberes” e o “Eis” refletem essa missão. O primeiro projeto destaca a produção intelectual negra ao longo do ano, indo além do calendário simbólico de novembro. O segundo emociona ao levar crianças negras ao museu e mostrar novas possibilidades de futuro.
Entre as vivências que teve à frente do Muncab, a gestora relatou um dos momentos em que apenas ocupar um espaço foi capaz de provocar um sentimento de mudança: um menino do Pelourinho, ao ver uma diretora negra, afirmou: “Também quero ser diretor do museu”. Sua mãe, ambulante, chorou ao ver o filho acreditar em um futuro diferente.
“A gente precisa mostrar que a cultura negra não é só resistência, é também potência criativa, pensamento crítico, beleza e inovação. O Muncab é um espaço para isso, para sonhar e construir novas narrativas sobre nós mesmos”, diz Cintia, ao refletir sobre a proposta curatorial do museu.
Cintia compartilhou também experiências marcantes, como os casamentos LGBTQIAPN+ realizados no Muncab para pessoas que estiveram em privação de liberdade. Uma dessas cerimônias impactou profundamente duas mulheres negras que, após visitarem uma exposição sobre afetos e casamentos lésbicos, desistiram de tirar a própria vida. “A arte tem esse poder de transformar. Ela constrói subjetividades, cria outras realidades e nos permite sonhar”, afirma.
O futuro do Muncab também reflete essa visão de grandeza. Com o projeto “Muncab Expandido”, o museu pretende ocupar espaços públicos não convencionais com monumentos que celebrem a história e a luta negra, como o busto de João de Obá e a reafirmação da identidade de Iemanjá como símbolo da cultura afro-brasileira. Além disso, há o sonho de transformar o museu em um complexo com quatro prédios, um museu-escola e recursos de realidade aumentada.
Apesar dos muitos obstáculos, Cintia acredita na força da coletividade e na construção de um país mais justo: “A luta do povo negro não é só de dor, é de dignidade, de memória, de conquista. Estamos vencendo aos poucos, com arte, com política e com afeto”, concluiu.