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Revolução em rede: As lições das mulheres negras sobre poder, afeto e coletividade no 25 de Julho

Foto: Divulgação

Pensar o 25 de Julho é mais do que celebrar datas. É lembrar que, para nós, mulheres negras, a história nunca foi apenas uma linha do tempo — foi trincheira, foi estratégia, foi afeto. É nesse dia de hoje que celebramos a luta de mulheres negras latino-americanas e caribenhas, mas também refletimos sobre as encruzilhadas que atravessamos: entre a sobrevivência e o poder, entre o invisível e o indispensável, entre o que nos negam e o que já conquistamos com sangue, suor, alegrias e inteligência.

A luta como projeto de vida — e dignidade — fez com que a minha geração, a dos 40+, aprendesse que dignidade financeira e autonomia intelectual para mulheres negras só vêm com a ocupação de espaços de formulação, comando e disputa. Ocupamos secretarias, coordenações, conselhos, empresas, universidades e o terceiro setor. Não para servir à lógica institucional, mas para tensioná-la. E, sim, isso teve um custo. Em muitos casos, nossos afastamentos pessoais ou desconfiança exacerbada.

Nos moldes de Patricia Hill Collins, Angela Davis, Sueli Carneiro, mulheres pretas do nosso dia a dia e Lélia Gonzalez, entendemos que feminismo negro é projeto político. É interseccionalidade viva entre raça, classe e gênero. Não nos bastava “empoderar-se”; era preciso formular, planejar, executar políticas públicas, tensionar orçamentos, negociar com grandes empresas e criar redes econômicas de resistência que, da geração destas, nos trouxe até aqui. E essa é a grande questão: quem somos nós quando essas começam a cansar?

Essa geração — a minha — não teve tempo para o luxo da alienação. Tivemos que ser estratégicas com o pouco que nos deram. E o resultado é a criação de brechas que uma sociedade inteira tem aproveitado — e nelas florescemos. E mesmo quando o sistema falhou (e falhou feio), não abandonamos o barco. Reconfiguramos. Éramos a base, somos ainda a base de impacto. E sabemos que a luta nunca foi individual.

Tentamos, a muito custo, manter as redes que nos sustentam e influenciam. Engana-se quem acha que subir sozinha é vitória. Mulheres negras não “vencem” solitárias — acumulam. Acumulam dores, encargos e sonhos de outras que não puderam chegar.

Por isso, liderança negra, para ser legítima, precisa pensar retaguarda. Precisa de rede. Como bem diz bell hooks: “o amor é um ato de vontade – tanto uma intenção como uma ação”. Precisamos perder o medo de pedir ajuda e ser gratas, reconhecendo quem faz isso. Não podemos lembrar das mulheres negras quando somos trevas e das demais quando somos luz.

O que fizemos foi isso: uma escolha amorosa de resistência. Como Djamila Ribeiro pontua, “as mulheres negras sempre estiveram em movimento”. Mas é preciso dizer: muitas que hoje estão nos holofotes não têm ecoado esse legado com a mesma consistência.

Temos hoje uma nova geração, novos códigos. E novos desafios — e isso precisa fazer parte das nossas novas caminhadas. Não é denúncia, é constatação reflexiva: a geração atual — tão conectada, tão criativa, tão cheia de alcance — muitas vezes tem escolhido trilhas individuais, em detrimento de projetos coletivos.

Isso não é falha de caráter, em muitos casos, mas sintoma de uma estrutura que nos esgota a ponto de fazer parecer que pensar só em si é o único alívio possível. Vivemos socializadas nas redes e nos escondendo quando juntos e juntas.

Mas quem somos nós se não a herança de quem nos puxou para dentro? Lembro de figuras que, mesmo sem estabilidade financeira, pagaram formações, indicaram cargos, abriram portas sem esperar retorno. Mulheres como Luiza Bairros, Makota Valdina, Lindinalva de Paula, Rita Castro e muitas outras que, mesmo sem grandes projeções, têm feito um trabalho belíssimo por sua comunidade. Quero citar aqui minha irmã de santo, Elisangela Silva, do Afoxé Filhos do Korin Efan, que muito me orgulha com o trabalho que tem feito no centro histórico de Salvador.

Elas não pensavam — ou pensam — apenas em si; pensavam — e pensam — o mundo.

Hoje, entre as influenciadoras e os novos rostos negros da visibilidade, nos perguntamos: seus conteúdos mobilizam estruturas? Ou silenciam diante do racismo para manter contratos? Qual o custo da neutralidade? E quem continua pagando por ela?

Ainda não somos revolucionárias — e tudo bem (por enquanto). Levamos tempo pra entender como o jogo funciona. Ainda somos uma geração de transição. E isso é potente. Mas não é o suficiente. As estruturas reais ainda não foram deslocadas como precisam. A base de impacto ainda é sustentada pelas mulheres negras que envelhecem enquanto esperam ser substituídas por quem dará continuidade à luta — e não ao status.

O movimento de mulheres negras não é moda nem marca. É rebelião afetiva e política contra um sistema que nos quis exaustas. É ancestralidade como estratégia. É espiritualidade como ciência. É economia como campo de disputa. É liderança como prática coletiva.

E agora, mulher preta?

Neste 25 de Julho, não lhe faço uma cobrança, mas um convite: como você tem organizado sua vida financeira, profissional e emocional para que ela sirva não só a você, mas à coletividade? Quais espaços de poder você quer ocupar? E quem vai com você?

Se, como disse Audre Lorde, “não serei livre enquanto alguma mulher não o for”, então que nossa liberdade seja também um projeto de grupo.

Nossos passos vêm de longe, mas ainda não chegaram onde merecem. Que a gente continue, abrindo portas, sustentando redes, puxando umas às outras. Porque revolucionar não é sobre brilhar sozinha — é sobre iluminar caminhos.

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