...

Portal UMBU

Ser a alegria da cidade: A dor dançável da desgraça comemorativa

“Nos ensinaram a celebrar mesmo quando perdemos. E nos chamam de alegres.” — Bell Hooks

Existem dores que o silêncio não consegue conter. E existem dores que, mesmo gritadas, são transformadas em espetáculo. No Brasil, especialmente nas cidades com herança colonial profunda, a dor do povo negro foi moldada para ser dançável. Transformaram nossos gritos em canto, nossos corpos em alegoria, nossa resistência em entretenimento.

Ser “a alegria da cidade” tornou-se um papel compulsório para quem carrega séculos de opressão nas costas. Os corpos negros são chamados a performar felicidade enquanto vivem realidades de exclusão, precariedade e invisibilidade, vide seu papel nas escolas de samba, festas populares e de rua ou fim de seus momentos de glamour em diferentes palcos quando deixam de ser artistas e enfrentam o ponto de ônibus e toda violência da cidade. A artista e intelectual negra Leda Maria Martins, ao estudar os corpos performáticos nas culturas afro-brasileiras, aponta como essa performance muitas vezes é atravessada pela dor — uma dor que dança e toca. Os artistas negros enfrentam barreiras históricas que vão da desigualdade racial à negação de oportunidades e pagamento digno. 

O valor atribuído à produção artística negra ainda é distorcido, desvalorizado e tratado como “improvisável” — como se qualidade e profissionalismo fossem privilégios brancos. Frases como “não dá para pagar mais” escondem um sistema que normaliza a exploração e exige silêncio como moeda de sobrevivência de uma mão de obra qualificada e capaz. Mas que desrespeitoso, contratante branco ou negro, o valor da desvalorização a mão de obra negra se equipara em discurso e prática.

Nesse cenário, a busca pela afrocentria — o enraizamento da arte na valorização da cultura africana e da cultura negra brasileira — surge como um caminho necessário na construção da auto empregabilidade. É um processo que não apenas afirma identidades, mas resgata narrativas econômicas historicamente apagadas. Como defende a multiartista e pensadora Grada Kilomba, a arte negra precisa deixar de ser “folclorizada” para ser reconhecida como saber e linguagem legítima de poder e transformação.

As festas populares, carnavais e eventos culturais celebrados como identidade nacional são, muitas vezes, construídos sobre o suor e o talento de um povo que não foi convidado a celebrar, mas convocado a performar. É a isso que chamo de “desgraça comemorativa”: o fenômeno de ver nossas dores recicladas em palcos e avenidas, com música alta e brilho nos olhos — enquanto seguimos com as feridas abertas e os direitos negados seja nos acessos a camarotes ou a cargos culturais onde podemos ser a diferença. Em Salvador, cidade mais negra fora da África, por exemplo, a cultura é branca em seu comando institucional.

Quem tem o direito de ser espectador, e quem é empurrado para o picadeiro? Quem lucra com a alegria encenada por corpos pretos, periféricos e LGBTQIAPN+? O riso forjado não liberta. Ele aprisiona em personagens criados para confortar a consciência da cidade colonial e de seus feudos, que aplaude nossa performance e ignora nosso pranto.

A cidade se alegra com a batida do tambor, mas fecha os olhos para a ausência de políticas públicas que garantam saúde, moradia, renda digna e reconhecimento aos artistas, às mães de santo, aos foliões, aos brincantes e às comunidades tradicionais. Como provoca o coreógrafo e pesquisador Zebrinha, “ser negro e artista no Brasil é fazer arte com a corda no pescoço”. A cidade aplaude nossa dança, mas esquece que dançamos para sobreviver. Muitas vezes, o corpo que dança hoje foi o mesmo que protestou ontem e será o mesmo que será perseguido amanhã ou ao final de uma apresentação como aconteceu com o artista Leno Sacramento.

Não se trata de negar a festa. Trata-se de resgatar sua dignidade. De lembrar que a alegria verdadeira só é possível quando não nasce da obrigação de esconder a dor. É preciso desconstruir a lógica que celebra o corpo negro enquanto dança, mas o ignora quando protesta, paga dignamente, lidera ou simplesmente descansa.

Como ensina a escritora Conceição Evaristo, nossas vozes não são apenas de denúncia, mas de invenção de outros mundos possíveis. A nossa festa pode e deve existir, mas deve ser escolha — não escudo. A nossa arte deve ser liberdade — não cárcere.

Ser a alegria da cidade, como sinaliza Lazzo Matumbi, não pode mais ser uma sentença. Que seja, se quiser ser. Que seja, se for com dignidade, reconhecimento e respeito. Que a dança seja escolha. Que a alegria seja nossa — e não apenas uma moldura para a indiferença e venda de uma ideia que mostra o país como não racista.

Inscrever-se
Notificar de
guest
0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

POSTS RELACIONADOS

plugins premium WordPress
Ir para o conteúdo