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Liberdade e memória: Pai Pote fala sobre o Bembé do Mercado, símbolo de resistência, luta e afirmação da população negra

Foto: Iphan

Importante liderança religiosa do Recôncavo Baiano, José Raimundo Lima Chaves, conhecido como Pai Pote, é um dos mais expressivos nomes da preservação e difusão da cultura afro-brasileira. Presidente da Associação Beneficente Bembé do Mercado, o Babalorixá acumula quase quatro décadas de dedicação ao Candomblé, sendo reconhecido como um verdadeiro embaixador da herança ancestral da Bahia, no Brasil e no exterior.

Filho da feirante Carmelita Lima e do agricultor José Chaves, Pai Pote nasceu em Santo Amaro da Purificação, cidade marcada por intensas manifestações culturais e religiosas de matriz africana. Há 30 anos, fundou o terreiro Ilê Axé Ojoanirê, consolidando um espaço de resistência, salvaguarda e valorização das tradições do Candomblé. 

Sua trajetória é intrinsecamente ligada ao Bembé do Mercado, manifestação secular que, sob sua liderança, ganhou protagonismo como patrimônio imaterial reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Ao longo dos anos, Pai Pote consolidou sua atuação que ecoa em Santo Amaro e no mundo. Participou ativamente da Lavagem de La Madeleine, em Paris, desde a primeira edição em 2001, e esteve à frente de eventos internacionais de combate à intolerância religiosa, como a 1ª Caminhada contra a Intolerância Religiosa de Lisboa. Sua presença constante em atividades culturais e religiosas, no Brasil e fora dele, contribuiu para fortalecer os vínculos da diáspora africana e projetar a importância da cultura do Recôncavo baiano no cenário global.

Sua trajetória também é marcada por um trabalho consistente de articulação política e cultural, voltado à valorização da população negra e à defesa da igualdade racial. A partir do terreiro e das ações da associação que lidera, desenvolveu projetos de salvaguarda e promoção das expressões culturais do Recôncavo, como o samba de roda, as caretas de Acupe, a capoeira e o Nego Fugido.

Em reconhecimento a essa trajetória, a vida de Pai Pote foi transformada em tema do documentário ‘Pai Pote, o Filho de Ogum’, dirigido por Laís Lima, cineasta santoamarense e sua neta de santo. O filme, com lançamento previsto para 16  de maio, resgata momentos emblemáticos de sua vida, como a fundação do Ilê Axé Ojoanirê e a atuação internacional em eventos como a Lavagem de La Madeleine. 

Foto: Divulgação

A obra, que conta com uma equipe majoritariamente formada por mulheres e filhos de santo, representa um tributo à sua contribuição histórica para a cultura afro-brasileira, a religiosidade e a memória da população negra do Brasil.

Às vésperas do Bembé do Mercado, que ocorre entre os dias 10 e 18 de maio, em Santo Amaro, Recôncavo Baiano, Pai Pote conversou com a equipe do Portal Umbu sobre essa importante celebração religiosa. Na entrevista, revelou como surgiu sua ligação com a festividade, antecipou as novidades e falou sobre a homenagem que o Bembé do Mercado irá receber da escola de samba Beija-Flor no Carnaval de 2026. Confira:

Portal Umbu: Como surge a sua relação com o Bembé do Mercado? 

Pai Pote: O surgimento de Pai Pote dentro do Bembé do Mercado é desde criança, minha mãe é barraqueira, ela vendia comida. Eu morava na rua Barão de Vila Viçosa e tinha envolvimento com os terreiros que faziam o Bembé do Mercado, que era o irmão de santo meu, Tidu. E ele fez por 40 anos esse Bembé do Mercado e minha vivência começou ali dentro.

Terminei me iniciando no terreiro Ilê Axé Ojoanirê, terreiro Viva Deus, de Santo Amaro. Existem vários Viva Deus, inclusive tem um em Salvador, tem um em Cachoeira e, esse de Santo Amaro, é mais velho do que o Bembé. Eu desenvolvi um trabalho junto com a comunidade e fiquei sendo realmente um responsável pelo Bembé do Mercado de Santo Amaro, que são 136 anos de resistência, luta e afirmação da população negra.

Eu fui iniciado aos 19 anos no terreiro Ilê Axé Ojoanirê, terreiro Viva Deus de Santo Amaro. Nasci em 1965, então hoje estou fazendo 39 anos de santo.

Portal Umbu: O senhor tem uma vida dentro do Bembé do Mercado, dentro da cultura do Axé. Em todos esses anos, qual é a avaliação que o senhor faz da necessidade de festejar essa libertação e qual é a relevância disso para a perpetuação da cultura negra no Brasil?

A necessidade de festejar a libertação que não existiu, mas é uma libertação nossa, nos divertir, de fazer oferenda para Iemanjá, está ali com o nosso povo. É uma afirmação de um projeto, de uma realização, de uma celebração que é o Bembé do Mercado, de um resgate, de uma reparação e tem 136 anos. Para mim, é importante porque eu me sinto bem, estou ali, sou da religião, a população negra está ali dentro, o maculelê, a capoeira, o samba de roda, a comida, o peixe-frito, a moqueca, o sarapatel, a maniçoba, a feijoada, tudo isso faz parte da cultura afrodescendente.

E eu me achei nesse meio do bembé do mercado porque é uma afirmação, é um jeito até de vocês também se divertirem, apoiar a causa e a gente reverencia mais o Bembé como Iemanjá. Tem a libertação que Iemanjá nos deu. Iemanjá é ori, é a dona da cabeça, Iemanjá e Oxum, que é a dona do rio. E também a libertação que não existiu. Mas existiu para a gente porque é tanto sofrimento e tem um evento, que é uma celebração da população negra e que nos ajuda a fazer mais reparações para nosso povo negro.

A necessidade de festejar a libertação que não existiu, mas é uma libertação nossa

Não estamos reverenciando a Princesa Isabel [herdeira do Império, assinou a Lei Áurea em 13 de maio de 1888 que aboliu a escravidão de negros no Brasil]. Tudo bem, ela assinou a Lei Áurea. Mas estamos reverenciando, ali, a ancestralidade do povo que veio antes da gente, as pessoas, os babalorixás, os pescadores, as marisqueiras, os feirantes, essas pessoas nos representam mais do que a Princesa Isabel.

Fazemos política cultural e política pública para o nosso povo, que vive em pleno século XXI, em situação horrível. Você vê aí os negros morrendo, as pessoas precisando de ajuda, a Universidade não querendo colocar os negros lá dentro. Então a luta é árdua e o Bembé representa tudo isso. A população negra dentro da universidade e os outros terreiros de Salvador, do Brasil e do mundo, porque o Bembé é um patrimônio imaterial do Brasil.

Estamos reverenciando a ancestralidade do povo que veio antes da gente, as pessoas, os babalorixás, os pescadores, as marisqueiras, os feirantes, essas pessoas nos representam mais do que a Princesa Isabel

Portal Umbu: Esse ano, os dias de celebração já foram confirmados para o dia 10 e 18 de maio, há algo que o senhor possa antecipar que irá acontecer no sentido de convidados ou ações?

É importante salientar que a associação do Bembé com a prefeitura, com os órgãos competentes, com a SEPROMI, com IPAC, com Iphan, eles nos ajudam muito. É uma reparação que eles estão fazendo. Não totalmente, mas eles apoiam na medida do possível. Para a gente isso é importante. Ter uma pessoa do lado da gente apoiando.

Vamos ter palestras da Lei 10.639 [Legislação aprovada em 2003, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todos os níveis de ensino no país], seminários e várias mesas. Neste ano, a UNEB está nos ajudando com a casa, que é o centro de referência, porque ganhamos uma casa do século XVIII. A UNEB vai fazer uma parceria conosco para fortalecer os terreiros, não só da Bahia, mas do Brasil.

E dizer também que estamos felizes, que também terá as bandas, o samba é o patrimônio também do Brasil, samba de roda. Temos o Maculelê se apresentando e temos também várias outras ações. Não sei se está confirmado, mas também a presença do Ministério da Cultura para lançar o edital da cultura popular aqui em Santo Amaro.

Muitas pessoas vieram antes da gente, estão observando a gente, é a nossa ancestralidade

São várias pessoas confirmando e a gente aqui dialogando para chegar ao objetivo comum que é fazer a festa de 136 anos do Bembé do Mercado com amor e com carinho. Esse ano é especial também porque estamos na luta e o Bembé entra nessa situação do PAC [Novo PAC Patrimônio Cultural], que é para reformar a casa, é uma luta muito grande. Quando fala luta, não é luta de lutar, mas sim para caminhar, de pedir aos políticos que observem que o Bembé representa o Brasil e a população negra, pedir a autoridades que nos ajude mais, porque juntos somos mais fortes.

Que os terreiros venham também. Os outros moradores da cidade estão acostumados a vir e venham participar do Bembé, que, para a gente, é importante nossos irmãos de luz e de religião. Outras pessoas também, os historiadores, os pesquisadores, os antropólogos, venham para observar a questão do Bembé que é muito bonita. Essa resistência, persistência e perseverança para nosso povo que veio antes da gente.

Muitas pessoas vieram antes da gente, estão observando a gente, é a nossa ancestralidade, da população negra, que foi muito sofrido aqui na Bahia, no Brasil, especialmente no Recôncavo. Santo Amaro é uma cidade de canavieiras e tinha muita cana-de-açúcar, muitos escravos, que sofreram muito. Eu tava falando aqui em nome da ancestralidade, peço a bênção mais uma vez dizendo que é muita seriedade e muito amor, a gente só pensa na ancestralidade, não existe trabalhar para o Bembé sem pensar na memória dessa população negra. A memória é importante, a reflexão também, saber que estamos com a ancestralidade do lado da gente e ela observando a gente porque acreditamos em vida após a morte.

Não existe trabalhar para o Bembé sem pensar na memória dessa população negra

Tem que honrar porque nosso povo veio nessa diáspora africana, esse navio negreiro que o povo conta aí. Muitos morreram, não chegaram a lugar nenhum, mas os espíritos estão conosco, a energia também e é importante, porque são 65 terreiro da cidade, fora os outros terreiros que vão querer se cadastrar. Para a gente é importante a união de vir outros terreiros de Salvador, Maragogipe, Cachoeira, Cruz das Almas, Lauro de Freitas, Candeias, São Sebastião, são vários representantes de terreiros que vem e as pessoas estão ligados, conectados no bembé no mercado.

Portal Umbu – O que representa fazer essa celebração no meio da rua?

Fazer um Bembé do Mercado no meio da rua há 136 anos, e João de Obá [Fundador do Bembé do Mercado, João de Obá foi um negro escravizado, de origem Malê], que foi o percursor, teve muita coragem. Acredito que ele deve ter articulado com outras pessoas políticas, porque, hoje, tocar um candomblé na rua está difícil, imagine há 136 anos, onde tinha muita gente que era racista, perseguidores, que não gostam do negro, não gosta dos costumes e das nossas ações.

Hoje, tocar um candomblé na rua está difícil, imagine há 136 anos

Para a gente que é negro, preto, da Bahia, do Recôncavo, é importante celebrar sim. O que não podemos deixar é morrer, um legado desse importante, onde tem a culinária afro, onde tem a dança afro, onde tem a costume afro. E é onde tem o dendê, tem a pindoba, tem a maniçoba, o sarapatel, a feijoada, onde tem a conversa negra e o diálogo para seguir mais em frente.

É uma celebração, também, literária de voz. Quando falo literária, porque é o legado oral, que fortalece sim qualquer tipo de manifestação da população negra.

O legado oral fortalece sim qualquer tipo de manifestação da população negra.

Portal Umbu – Como foi receber a homenagem da Beija-Flor, que anunciou que o Bembé do Mercado será tema do carnaval no ano que vem?

Foi linda, porque a ancestralidade trouxe a escola Beija-Flor para Santo Amaro. Essa ancestralidade uniu a população negra daquele bairro, como eles falavam. Estou falando isso porque é a fala dos historiadores, dos antropólogos que ficaram aqui por uma semana. Eles foram para casa, para o Rio de Janeiro agora sexta-feira santa, mas vão voltar para o Bembé para poder pesquisar, conversar com os detentores do bem, com o Nego Fugido, com as caretas, que são grupos culturais. Para a gente foi importante porque é um fortalecendo o outro.

É um fortalecendo o outro.

Eles vão colocar o Bembé no maior carnaval do mundo. Para a gente foi uma realização de amor, de carinho, não de recurso financeiro, mas sim de levar o legado dos nossos ancestrais santoamarense, baiano, africano, afrodescendente, para a Sapucaí, representado pela população negra de Santo Amaro, pelos Terreiros e os quilombos.

É importante que o mesmo pensamento da Beija-Flor é o do Bembé e aceitamos. Ficamos felizes, entramos numa conversa, teve duas reuniões online com todos os detentores e eles votaram que queria aceitar realmente a Beija-Flor homenageasse. Vamos lavrar a ata, entregar a eles para usar o nome do Bembé, uma assinatura dos pais e mães de santo. É uma coisa muito maravilhosa agora que todo mundo aceitou, os pais de santo gostaram e não exigimos nada, nem ele também ofereceu.

Foto: Iphan

A questão é divulgar, entendeu? Porque é a divulgação pública, que vai retornar à comunidade, não só a nossa comunidade, mas o mundo. E ficamos felizes e vamos lutar para que eles ganhem e o jurado tenha realmente a compreensão da população negra, que tenha o entendimento da Beija-Flor. Dê valor a essa questão de homenagear o Bembé, que é uma celebração religiosa e cultural dentro de uma comunidade que precisa ter seus valores reparados por esse povo branco que nos maltrataram muito.

Eles [antropólogos e historiadores] foram para casa, vão voltar e a intenção é ganharmos esse desfile e também mostrar o trabalho de terreiro e da nossa ancestralidade. Mostrar o que é o Bembé para o povo, para o mundo, mostrar o que é acarajé para o mundo, o que é fazer um caruru, o que é uma roupa africana, falar dos africanos dentro do Rio de Janeiro, em um espetáculo maravilhoso para o mundo.

Os detentores ficaram muito felizes e eles foram muito compreensivos porque eles não ficaram de lá ligando, eles pagaram as passagens deles, vieram fazer a etnografia dentro dos territórios, para ver a comunidade e sintetizar tudo para poder trabalhar em cima dessas questões de adereço, de ala.

As pessoas também tem que entender que divulgar é importante, mostrar que nosso trabalho é importante, dos artesãos, do nosso povo, que construiu esse Brasil

Eles são muito educados, tratando a gente com dignidade, com respeito, respeitando a nossa ancestralidade, cada uma tem a sua, falando que a cidade de Nilópolis parece com Santo Amaro, por isso que escolheu, porque tem muito negro e a comunidade de Nilópolis tem valor, como nós aqui também temos. Mas as pessoas também tem que entender que divulgar é importante, mostrar que nosso trabalho é importante, dos artesãos, do nosso povo, que construiu esse Brasil que está aí, hoje, bonito e lindo.

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