
O cinema de faroeste construiu sua mitologia sobre arquétipos masculinos: o cowboy solitário, o pistoleiro moralmente ambíguo e a paisagem selvagem que serve como palco para duelos pela honra ou pelo poder. Por muito tempo, esses filmes celebraram a virilidade e a força como marcas de um homem “ideal”, enquanto relegavam as mulheres a papéis secundários — a dama em perigo, a donzela sonhadora ou a amante misteriosa. Hollywood começou a reinventar o gênero em 1992 com a obra “Dança com Lobos”, dirigida e protagonizada por Kevin Costner, na qual um soldado do exército durante a Guerra Civil Americana acaba tendo uma relação próxima com indígenas. Desde então, diversas obras vêm atualizando o gênero, discutindo pautas contemporâneas e construindo novos imaginários no cinema estadunidense.
Aqui no Brasil, o faroeste nunca foi um gênero tão comum, mas já vimos obras sobre pistoleiros, lobos solitários em realidades diversas e, claro, muitos homens buscando formas de comprovar sua virilidade e brigar por honra. O que chama a atenção no filme “Oeste Outra Vez”, de Erico Rassi, é a maneira como este propõe trabalhar tais questões. O filme, que foi o grande vencedor do Festival de Gramado de 2024, não esconde sua reverência ao legado do faroeste clássico, mas também se utiliza do gênero para expor a fragilidade do que antes era apresentado como força. Aqui, o herói não é indestrutível nem moralmente inquestionável; ao contrário, ele carrega cicatrizes físicas e emocionais que denunciam sua humanidade.
Totó e Durval são dois homens que constroem uma rivalidade a partir da disputa por uma mulher, mas que não têm sequer a coragem de lavar a honra com as próprias mãos. Ao contrário, contratam pistoleiros para resolver o embate. A maneira como a trama confronta essa masculinidade frágil é extremamente hábil e nos deixa uma reflexão sobre a própria maneira como a sociedade hoje vê esses homens, cobrados por virilidade, mas perdidos em seus próprios discursos.
“Como se rouba uma mulher?”, questiona um personagem em determinado momento. A objetificação das personagens femininas no cinema é algo que sempre foi normalizado de maneira geral. Desde sua criação em 1895, vemos como sujeitos da ação homens brancos, héteros e cisgêneros. Mesmo quando outros corpos eram protagonistas, sempre apareciam em função de algum homem. Vide a polêmica na época do filme da Mulher Maravilha que faz a heroína se pautar pelo amor de Steve Trevor. Outra prova de que as mulheres estão sempre em segundo plano no cinema é o teste de Bechdel.
Proposto como uma ironia pela cartunista Alison Bechdel, o teste consiste em submeter as obras cinematográficas a três regras simples que medem a maneira como as mulheres são tratadas. A primeira seria ter que existir pelo menos duas personagens mulheres com nome e importância na narrativa. A segunda é que elas precisariam conversar em determinado momento da trama. Terceiro, essa conversa não poderia ser sobre um homem. Poucos são os filmes que ainda hoje passam nesse teste.
Mas como disse, o teste foi criado como uma ironia pela cartunista, não era para ser levado tão a sério. Afinal, mesmo passando no teste, o filme pode reforçar uma visão machista. Assim como, mesmo não passando, pode trazer evoluções na discussão do tema. No caso de “Oeste Outra Vez”, há uma aproximação com a segunda hipótese. Existe apenas uma mulher em cena, ela não tem uma única fala e aparece apenas no início. Ainda assim, sua presença, e a das demais mulheres citadas, evoca uma reflexão sobre o mundo masculino tóxico retratado no filme.
Todos ali, rivais ou aliados, são refém de suas dores, do desejo e incapacidade de possuir de fato uma mulher. Moldados para serem fortes, ao gritar essa força só confirmam sua fragilidade. Perenes, enquanto elas são inesquecíveis, como a poeira que é levada pelo vento naquele espaço árido de Goiás. Um local distante, quase parado no tempo e espaço, com lei própria, mas que também cobra atitudes de seus elementos.
Há tiros, mortes, duelos e disputas, tal qual um bom e velho faroeste. Mas também há uma reflexão sobre o vazio que se constrói dentro desses homens quando uma mulher, cansada da fragilidade disfarçada de dureza, se levanta e simplesmente vai embora, sem olhar para trás. E eles, tão obcecados em defender suas honras, nem percebem quando isso acontece.
OPINIÃO
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