
Chegamos à Semana Santa, um dos períodos mais importantes para os católicos porque consiste na preparação para a sua maior festa: a Páscoa. Isso mesmo. Eu, durante muito tempo, imaginei que seria o Natal, mas como diz São Paulo: “Se Jesus não ressuscitasse, a fé [dos cristãos] não teria sentido” (1 Coríntios 15:12-23).
Nesta semana que antecede o domingo considerado o dia em que Jesus levantou do próprio túmulo, invertendo completamente a equação do começo X fim da vida e submetendo a única certeza humana, que é a morte, são adotadas diversas ações voltadas para a conversão dos pecados, como as vigílias e caminhadas penitenciais. A mais conhecida é a via sacra, onde os passos de Jesus até a morte na cruz, seguida pela ressurreição, são lembrados.
Os eventos da Semana Santa ganham ênfase a partir da Quarta, que é chamada de Maior, seguida pela Quinta Maior e a Sexta-Feira da Paixão. Em tese, neste dia, todas e todos os integrantes da comunidade católica deveriam fazer jejum e sequer ouvir música. Houve um tempo em que se cobriam até os espelhos e nem se ligava TV. Nas igrejas, ainda é comum, as imagens amanhecerem na Sexta-Feira Santa cobertas por panos roxos em sinal de luto.

Mas o passar do tempo é um grande desafio para as tradições continuarem na mesma marcha e com certeza alguém já ouviu avós resmungarem quando não apenas o vinho ganha o espaço na mesa, mas a cerveja e outras bebidas. Os tempos modernos fizeram grandes inovações no protocolo da Semana Santa, mas aqui vão alguns elementos que mostram que o povo do passado também adotava umas certas licenças nestes dias quebrando o silêncio, o recolhimento e toda essa esfera de penitência.
Vamos listar aqui umas coisinhas que fazemos por aqui pela Bahia e que podem também acontecer em outros lugares, como a Queima de Judas, mas das nossas tenho mais propriedade para meter a colher e fazer fuxico, atualizando sempre o maravilhoso meme de Ó Paí Ó: “É a Bahia”.

Jejum à Moda Baiana
Essa aqui nem é coisa dos tempos modernos e nossos avós podem até meio que tentar contestar, mas é bem raro que se eles nasceram e cresceram em território baiano, sobretudo na capital, Recôncavo e Piemonte do Paraguaçu, não esperaram assiduamente o meio-dia da Sexta-Feira da Paixão para degustar um banquete. Isso mesmo.
Os pratos variam de acordo com a região. No Piemonte do Paraguaçu, o cardápio costuma ser mais contido: vatapá, caruru, arroz, galinha de ensopado, moqueca de peixe, salada de bacalhau ou em forma de ensopado. A miraguaia, de vez em quando, frequenta algumas mesas da região.
Já na capital, a variedade deixa a todas e todos próximos do pecado da gula: caruru, vatapá, arroz, farofa de dendê, peixe de moqueca, ensopado, galinha de xinxim, frigideira de bacalhau, de marisco, de maturi e nem vou entrar no campo das sobremesas. De bebida, nas três regiões, o vinho governa, mas tem quem prefira até uma cachacinha.

Judas vai para a fogueira, mas antes encarna o boca de bocapiu
Tenho que reconhecer que esse jogo anda sendo abandonado, mas aqui e ali ainda sobrevive. Trata-se da Queima de Judas, que sempre ocorria no sábado após a Sexta-Feira da Paixão. O objetivo é mostrar que ser traíra com um amigo é um crime que não merece perdão, ainda mais em meio à falsidade. Segundo o que contam os evangelistas, Judas Iscariotes traiu não apenas o seu mestre, mas também um amigo, porque a relação de Jesus com os discípulos era de ensino, porém tinha os momentos de dividir comida e alegrias. Tem uma parte lá nos Evangelhos que até chamaram o Filho do Homem de “beberrão e comilão” (Confiram Mateus, 11, 18-20 e Lucas 7, 33-35), o que dá um grau de que nem tudo era falar de religião e política no grupo de Jesus e seus 12 discípulos. Pois, Judas Iscariotes não contou conversa e diante da proposta de receber 30 moedas de prata, deu o beijo que selou sua fama por mais de dois mil anos como o pior dos traiçoeiros.

Ah, o povão! Essa entidade deu um jeito de contar a história por meio de uma forma, digamos, mais divertida que até esconde a ideia reprovável de justiçamento. Mas se nas narrativas evangélicas Judas tirou a própria vida, na Bahia e em outros Estados do Nordeste, o rei das e dos falsianes acaba na fogueira. Antes da vingança contra o traidor todo mundo vai se divertir com a leitura do seu testamento que, como herança de um boa traíra, entrega “segredos” de todo mundo.
A leitura do testamento de Judas é o ponto alto da festa. Em outros tempos, o boneco que representa o discípulo do beijo mortal era levado em um jegue e exposto em seu lugar de castigo – a fogueira – até a leitura do testamento. E aí tome-lhe dizer que ele deixava uma serra para Fulano serrar algo que estava crescendo em sua testa; uma moedinha de prata para dona Coisinha metida a rica pagar a conta da padaria e coisas do gênero. Imagine o bafo nas comunidades de bairro e cidades do interior onde todo mundo ouvia, em alto e bom som, em público, o que se dizia à boca pequena.

Detalhe: o Judas costumava ter a cara de alguém famoso que todo mundo estava a fim de esculhambar, especialmente autoridades. Vários personagens que cometeram algum tipo de “pecado” contra o povo emprestaram sua cara a Judas. Em ano de confisco econômico, lá na década de 1990, por exemplo, o então presidente Fernando Collor de Mello ocupou muitas destas fogueiras com faixa presidencial e tudo.
O Gato da Misericórdia e a pedrada que quase acertou o chefe da polícia
E vai aqui um exemplo de que o povo guarda a Semana Santa, mas tem uns altos e baixos na compostura desde os tempos remotos. João da Silva Campos, em seu maravilhoso livro Procissões Tradicionais da Bahia conta, consternado, como o que chama de “populacho” aprontava na Procissão do Fogaréu, um dos muitos eventos na Semana Santa de Salvador desde o período colonial.
A Procissão do Fogaréu na capital baiana começou a ser realizada, segundo Silva Campos, em 1618. As pessoas acompanhavam a procissão vestidas de preto, sem joias ou adornos, afinal o objetivo era lembrar os eventos que levaram à prisão de Jesus. A de Salvador tinha uma regra: era preciso visitar, a partir do final da tarde, sete igrejas que tivessem armando o que era chamado de Santo Sepulcro. O autor não entra em detalhes, mas imagino que poderia ser uma réplica do túmulo de onde Jesus ressuscitou, semelhante aos presépios que imitam o estábulo onde ele nasceu, segundo as versões dos evangelhos.

Quando anoitecia era a hora da saída da procissão da Igreja da Misericórdia, que fica no Centro Histórico de Salvador. O povo estava o dia todo na rua. Dá para imaginar o cansaço, mas também quem, entre um jejum e outro, sucumbia a um ou dois copinhos de vinho. Podia também ter gente que não estava lá de muito bom humor, pois a vida na Salvador colonial para a maioria do povão não era nada fácil.
Na procissão saía tanto o Cão, como o Gato da Misericórdia. Os personagens eram encarnados por pessoas reais e, possivelmente, representavam o mal. O Gato da Misericórdia levava a matraca, uma espécie de tábua que tem um gancho de metal para produzir um efeito sonoro. Nas procissões da Sexta-Feira da Paixão, ela, geralmente, é tocada após o cântico da personagem Verônica. Não dá para saber o porquê, mas o povo adorava perturbar o pobre do Gato da Misericórdia. Era um tal de jogar pedra, assoviar… sempre segundo João da Silva Campos. Parece que o pobre do Gato absorvia a catarse popular contra os seus males e, que na verdade, apenas disfarçava o desejo de que os xingamentos atingissem as autoridades.

Pois bem. “Cuidado com o que se deseja” é um provérbio bem resistente ao tempo e a diversas situações. Em 1872, as pedras direcionadas ao Gato chegaram perto do chefe da polícia. Resultado: a procissão foi proibida.
Isso é só para a gente lembrar que a Semana é Santa, mas as pessoas nem tanto. Mas isso é o sentido mesmo dessa festa, gente. Lembrar das nossas fragilidades como pessoas humanas e, para os católicos, é uma ocasião de lembrar o amor de seu Deus por elas, afinal ele assumiu a nossa natureza e até aceitou morrer para mostrar desapego em favor do outro.
A história da celebração católica pelo menos tem um final feliz que é a Páscoa e a gente, de novo, deu um jeito de misturar cristianismo, festa para uma deusa nórdica e o protagonismo para um coelho e chocolates. Bem, essa história é para contar em outro momento. Por hora desejo que celebrem esses dias santos, especialmente em família, mas vale lembrar que o vinho em sua doçura arma umas situações que podem virar momentos dignos de grandes penitências. Portanto, moderação e os meus votos de uma Santa Semana para todas e todos.
