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Quando o assunto é aniversário de Salvador, sobra treta e fuxico

Foto: Reprodução/Melhores Destinos

Uma das identidades que Salvador reivindica e preserva é a de cidade festiva. As provas são muitas e delas me ocupei mais detalhadamente para a elaboração da minha tese intitulada Festa de Verão em Salvador. E olhem que, na pesquisa, eu só me dediquei a analisar um pequeno conjunto de celebrações pré-Carnaval, que, parafraseando o universo de R.R. Martin, é a “mãe de todas as festas” da cidade.

Entretanto, a roda festiva da Cidade da Baía de Todos-os-Santos é bem azeitada e, neste sábado, ela vai festejar seus 476 aninhos de fundação. Mas como tudo que se refere a Salvador não é exatamente o que parece e dá panos para manga, saia, babado e o que mais for preciso vou destacar três informações  sobre o 29 de março que mostram como esta data tem potencial para  as tretas seguirem aí por mais centenas de anos. 

1) O dia 29 de março é uma data apenas simbólica em relação ao nascimento da cidade

É isso mesmo. A data de celebração do aniversário da cidade é uma convenção. A história é bem longa, mas o problema é que Tomé de Souza não registrou quando colocou uma pedra fundamental ou um marco sinalizando o dia em que começaram as obras dos primeiros prédios da cidade. Na verdade, parece que o objetivo de Seu Tomé era mesmo cumprir as ordens do rei e voltar o mais depressa que pudesse para Portugal. Ele fez vários pedidos neste sentido e sempre resmungando, em cartas para a mulher, por estar passando mais tempo do que queria. Finalmente voltou quase quatro anos depois da chegada em 1549.

Então como é que se fez para celebrar com pompa e circunstância os 400 anos de fundação da cidade em 1949 com uma festa que até nos 450 anos ainda era notícia?

Uma comissão de pesquisadores (a ciência é tudo) do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), da Academia de Letras da Bahia (ALB) e do Centro de Estudos Baianos sugeriu 29 de março. Esse, com certeza, foi o dia de desembarque de Tomé de Souza e comitiva no Porto da Barra, antiga Vila do Pereira. Vale ressaltar que a chegada deste povo abriu a era de tragédias para o povo tupinambá em uma parte nada dignificante dessa história de ocupação do território onde foi erguida a cidade. 

Já Pedro Calmon defendia o dia 1º de maio alegando que foi nesta data que os trabalhadores envolvidos na construção receberam seu primeiro pagamento.  E se esta tese tivesse prevalecido? Íamos festejar o Dia do Trabalho, data mais moderna, e o aniversário de Salvador. Vale lembrar que não perderíamos dois feriados em um, pois o 29 de março não é dia de pausa. O calendário de feriados municipais já está lotado e não se pode criar novos.

Pedro Calmon | Foto: Reprodução

Teodoro Sampaio, um dos mais geniais intelectuais negros que a Bahia deu ao mundo, defendeu ardorosamente o dia 13 de junho. Com uma abordagem que deixa quentinhos os corações de quem envereda pela antropologia seu argumento foi poderoso: neste dia aconteceu a primeira festa na cidade. Isso mesmo.

Em dois meses e alguns dias da chegada de Tomé de Souza e companhia,  já rolou festa em Salvador. Vale dizer que era religiosa e bem solene para a liturgia católica: a procissão de Corpus Christi, mas era o que se tinha e logo, logo esta e outras procissões ganhariam corpo de grande evento na cidade. E 13 de junho ainda é dia de Santo Antônio, pois Corpus Christi é uma festa móvel e a cada ano cai em data diferente. Mas eu volto à história dessa festa daqui a pouco porque tem é babado histórico. 

Teodoro Sampaio | Foto: Reprodução
2) E agora? Salvador pode ser de Áries, Touro ou Gêmeos…  

Que Salvador é de todos os Inquices, Orixás, Voduns, Caboclos, Santos e Encantados, a gente já sabe. Mas com tantas possibilidades de “nascimento”, qual é o signo da cidade?

Sob a regência de Marte
Imagem: Reprodução

Pela data convencional, Salvador é de Áries. A regência dos nativos deste signo fica com Marte, o planeta da confusão. Então é porrada, grito, correria e… é melhor parar aqui porque a frase no original fica pesada até para o baianês. Mas se tem gente que chama este povo pela natureza difícil de Satanáries (que maldade), as virtudes dessa turma são muito valiosas e tem a ver com esta preciosa cidade: coragem, determinação, lealdade, senso de justiça. O problema é a impulsividade, mas que os move para os desafios.

A comida, mô pai
Imagem: Reprodução/Sou eu na vida/Facebook

Tá. O povo de Touro é leal, sensível e gosta de contato com a natureza. Ok. Tudo a ver com Salvador, se persistisse a hipótese de 1º de maio de Pedro Calmon. Mas quando  se fala em gente desse signo, vamos ser sinceras e sinceros, todo mundo lembra da sua habilidade para consumir o quanto de comida aparecer na sua frente. Não tem gente mais gulosa que esse povo, não. Então faz sentido, né? Afinal, Salvador dá nome e sobrenome quando o assunto é comida especialmente aquela regada a dendê.   

Nascida na festa
Imagem: Reprodução/Facebook/Astroloucamente

Se a data de aniversário de Salvador fosse fixada em 13 de junho, a capital baiana não apenas estaria ainda mais próxima de Santo Antônio, que já teve um período como seu padroeiro, mas também seria do signo do pessoal da festa por excelência. O povo de Gêmeos parece que vive ligado em corrente de 220 volts, domina a comunicação e a inteligência como ninguém e gosta de liberdade sem se apegar a muitas regras. Isso bate com a aura da cidade, não é mesmo?

Mas vamos combinar né, gente? Salvador é tão múltipla que pode não apenas ser desses três signos, mas do zodíaco inteiro. Não é à toa que tem essa energia tão poderosa.

3) Procissão como primeira festa

Em 13 de junho de 1549 já teve festa em Salvador. Foi a procissão de Corpus Christi e, que mesmo, com apenas dois meses de obras da cidade, foi um evento e tanto.  Segundo o relato de João da Silva Campos, um maravilhoso pesquisador das festas religiosas autor do livro Procissões Tradicionais da Bahia, a celebração foi digna para a estreia:

“mui solene, em que jogou toda a artilharia que estava na cerca, as ruas muito enramadas, houve danças e invenções à maneira de Portugal”. (Procissões Tradicionais da Bahia- João da Silva Campos, p.326).

Esta se tornou uma das procissões oficiais da cidade com participação obrigatória principalmente das autoridades. Ainda hoje há uma ligação forte com a Câmara Municipal de Salvador na celebração, inclusive com a tradição da confecção na frente do prédio da instituição do tapete de serragem que forma figuras religiosas.

Corpus Christi é uma das mais solenes festas da Igreja Católica e o único dia em que Jesus, na forma de Pão (a Hóstia), sai às ruas. É tão solene que o recipiente em que se leva a hóstia (ostensório ou custódia) segue debaixo de uma cobertura chamada pálio e o celebrante (padre ou bispo) usa um manto para segurar o objeto.

Corpus Christi | Foto: Canva/Divulgação

Pois mesmo com toda esta solenidade, a festa em Salvador tem um histórico de  tretas.

Froger, membro de uma esquadra francesa que visitou a capital baiana em 1696,  deixou um relato sobre a procissão que é considerada a segunda notícia mais antiga sobre a celebração. O relato começa com um elogio pela presença de objetos religiosos, andores, paramentos ricos, presença de tropa, confrarias e outras representações semelhantes, mas há crítica a uma parte lúdica composta da seguinte forma:

“os bandos mascarados, músicos e dançarinos que com as posturas lúbricas perturbavam inteiramente a ordem da santa cerimônia”.

Imaginem que nesta Cidade da Baía nada, nem mesmo o rito mais solene, fugia a um toque, digamos, de invenções locais. Mas é difícil superar, com base nos relatos de João da Silva Campos, o que aprontou o bispo Dom Pedro da Silva caracterizado pela crônica histórica simplesmente como “brutamontes”. 

Acreditem. Dom Pedro da Silva não andava em boas relações com o governador Antônio Teles da Silva nem com o Senado da Câmara. Já sabemos que a Câmara tinha lugar especial na procissão. Pois bem. Quando percebeu que o governador e  representantes da Câmara se aproximavam da procissão cuja saída ele havia apressado, o bispo, em 1643, saiu deixou o pálio e largou a custódia com a hóstia (imaginem!) nas mãos de um outro sacerdote, o que já era motivo de escândalo.

Não satisfeito, Dom Pedro da Silva agarrou um vereador pelo braço e com violência o fez passar adiante, aos berros, mandando que ele seguisse  sob pena de excomunhão em direção a uma outra ala. O pobre homem seguiu intimidado e envergonhado para espanto e disse me disse dos acompanhantes da procissão.

Vídeo: Reprodução/Tiktok/@todesnoacervo

Como não amar essa cidade maravilhosa? O que vale é a festa e  não importa essa imprecisão sobre a data de fundação. Salvador ama um fuxico e  com tantos deles as histórias relacionadas ao seu aniversário ficam ainda melhores.

No mais, parabéns Salvador, sua linda e continue assim: fechando, mesmo com o seu aniversário não sendo feriado.     

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