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Na festa de 40 anos da axé music, a contribuição negra está quase invisível

Documentários, homenagens, reportagens extensas e mais e mais informações dão conta de uma data considerada marco da indústria cultural baiana de forma massacrante na repetição.  Mas são 40 anos mesmo de qual música baseada em axé?

Circuito Osmar, Campo Grande | Data: 19/02/2023. Foto: Manu Dias/Secom/Governo da Bahia

Possivelmente só Butch Wilmore e Suni Williams, em meio ao perrengue de estarem presos literalmente no espaço, passam um dia sem esbarrar em algum conteúdo sobre os 40 anos da axé music. Documentários, homenagens, reportagens extensas e mais e mais informações dão conta de uma data considerada marco da indústria cultural baiana de forma massacrante na repetição.  Mas são 40 anos mesmo de qual música baseada em axé? Se for a alicerçada em contribuições de bases afro-brasileiras a partir do Carnaval, quatro décadas é apenas um suspiro em uma trajetória secular.  

Circuito Dodô, Barra. Data: 19/02/2023 | Foto: Manu Dias/Secom/Governo da Bahia

Pesquisador dos elementos das festas da Bahia, Nelson Cadena, em muitos de seus artigos, tem contribuído para mostrar que o Carnaval baiano não seria a potência que é sem as mãos, invenção e ousadia de africanos e sua descendência. Em 1895, segundo Cadena, a cidade foi encantada pelo desfile majestoso da Embaixada Africana. Essa agremiação, além de recriar de forma luxuosa as cortes africanas, quebrou a mesmice, na capital da Bahia, dos desfiles de Carnaval só com música instrumental. A Embaixada Africana adotou os “enredos cantados”, ou seja, letra nas músicas.   

Os jornais do período, porta-vozes das elites baianas, logo encontraram motivos para tentar diminuir as proezas da Embaixada Africana:  

“A imprensa não enxergava com bons olhos esses cânticos. Os chamavam de “enfadonhos tlin, tlin, tlan” e qualificava os instrumentos de “bárbaros”. Não compreendia do que se tratava e o viés crítico dos escrivas rotulava todas as músicas como “batuques”, então um termo pejorativo para se referir à música dos terreiros. Incomodava a imprensa que o desfile ocorresse no mesmo espaço geográfico, entre a Praça da Sé e a Rua Chile, onde se exibiam os cortejos dos blocos de brancos”, conta Cadena no artigo “O pioneirismo dos blocos afros no Carnaval não instrumental”.

Em 1905, mais uma informação de Cadena, a presença dessas instituições de base cultural afro-brasileira foi banida pelo poder de polícia. Não adiantou. Ressurgiram em menor número, mas mantendo o padrão de ir para a rua em muitos modelos: cordões e afoxés, por exemplo. Estes últimos, em quase sua totalidade, constituíam-se na forma do povo de santo ir para a rua festejar. São agremiações de terreiro, ou um candomblé extensivo à rua, como gostava de destacar o grande e brilhante Jaime Sodré.    

Filhos de Gandhy. Data:  19/02/2023 | Crédito: Matheus Pereira/Secom/Governo da Bahia

A chegada do trio elétrico sacramentou o modelo que os agentes, especialmente os do poder público, adotaram para o Carnaval de Salvador. Com essa escolha, as escolas de samba foram perdendo terreno e em 1985 foi a vez da última daquelas pioneiras desfilar no Carnaval: a Bafo de Onça.

O adeus da Bafo de Onça aconteceu dez anos depois da chegada de uma outra instituição negra que abalou o espaço tão disputado deste Carnaval soteropolitano: o Ilê Aiyê, criticado em 1975 por uma nota de A Tarde como elemento destoante e “racista” – vale o registro de que a praga do mentiroso racismo reverso não é de hoje -. Se de Ilê são 50 anos e 76 anos de Gandhy, por que tanta festa com 40 anos de uma música que tem como bases o terreno do Carnaval negro? Axé é um termo de língua iorubá, que é um dos marcadores litúrgicos da herança de uma das tradições do candomblé.   

E chegamos ao nosso ponto central e que é o mesmo problema que atingia a Embaixada Africana lá em 1895. Essa invisibilidade negra na festa dos 40 anos da axé music integra muitos dos   desdobramentos do racismo estrutural, estruturante e “cordial” à brasileira, mas nem por isso menos perverso, excludente e violento.   A axé music só foi possível com o combustível da criatividade negra no Carnaval, um dos seus principais terrenos de embate, mas no banquete desta festa não tem lugar no primeiro escalão para as herdeiras e os herdeiros de todo esse legado.

Para quem duvida tem um pequeno teste. Vejam este vídeo da campanha criada por Nizan Guanaes para as Obras Sociais Irmã Dulce, em 1988. Podemos fazer uma espécie de “Onde está Wally” das nossas estrelas musicais. No vídeo de “We are the World of Carnaval” vamos procurar artistas negras e negros. Para dar um tempo a quem está me acompanhando na batida deste meu acaçá de palavras, destaco que é de se esperar uma maioria esmagadora, afinal estamos na “cidade mais negra fora do continente africano” (Não posso abrir mão totalmente dos clichês da nossa baianidade nagô). Mas vamos ao teste:

Enquanto vocês procuram e se encantam, afinal o vídeo já começa com duas presenças arrasadoras: Lazzo “A Voz” Matumbi e Margareth Menezes, A Ministra de Voz Poderosa, preciso lembrar que na década de 1980 os artistas se reuniam em prol de causas sociais, como se dizia. Três anos antes de “We are the World of Carnaval”, o produtor musical Quincy Jones e o maravilhoso Harry Belafonte criaram a campanha “Usa for Africa” para combater a fome em países africanos. A canção, composta por Lionel Richie e Michael Jackson, reuniu além dos dois, um time de peso: Stevie Wonder, Tina Turner, Diana Ross, Ray Charles e muitas outras estrelas, aliás muito mais pessoas negras do que…

Está na hora do resultado:

Lazzo Matumbi e Margareth Menezes são os únicos artistas negros no vídeo de “We are the World of Carnaval”. E de 1988 para cá este número foi ampliado? Nada. Teve o acréscimo de Carlinhos Brown que é, além de artista, um empresário do setor.  Há representantes de outros gêneros nascidos do Carnaval, como o pagode, mas quem está no patamar de visibilidade e ganhos de Léo Santana?

E vale ressaltar: o protagonismo ainda mantido por Lazzo foi construído a duras penas e por sua teimosia e imenso talento. Se aquela voz ressoasse de território norte-americano… ah… não sei se Sinatra manteria o título de The Voice. Já Margareth Menezes, além de ter ficado com o posto de anunciadora de um dos maiores clássicos da música surgida da revolução negra no Carnaval, conhecida pelo refrão “Eu falei Faraó”, encantou David Byrne que era rotulado como um produtor de “World Music”. Ou seja, a voz de Maga era para o mundo, mas não servia para a tal axé music na condição de protagonismo?

E tem mais enigmas nessa tal senhora de 40 anos. Diferentemente dos movimentos que surgiram disputando o posto de reinado do Carnaval da Bahia, a axé music foi a que escorregou feio tipo naquela lama malcheirosa que fica depois que o bloco de trio passa pelas passarelas.

Sim. Porque, por exemplo, “Chame Gente”, o hino do Carnaval de Trio, rendeu seu tributo à herança negra.

A pé ou de caminhão não pode faltar a fé o Carnaval vai passar/Na Sé ou no Campo Grande somos os Filhos de Gandhy de Dodô e Osmar.

Ou seja, meu caro Bell Marques: o Gandhy é que pode bater no peito e dizer que é o Carnaval da Bahia, viu? Parêntese: Quem não pegou esta referência precisa fazer especialização em tretas de Carnaval e essa, infelizmente, agora não dá para contar ou eu não termino este texto e o povo do Umbu me acaba por ficar expandindo o generoso espaço que me concedem. Sigamos, pois.  

Antes da axé music, foi muita gente celebrando e analisando a revolução cultural negra no Carnaval baiano: Edil Pacheco, em 1984, com “Ijexá” para a bela voz de Clara Nunes, que lista as agremiações negras como Filhos de Gandhy, o potente Badauê, Ilê Aiyê, Malê De Balê e outros; Jimmy Cliff, que passou uma temporada morando em Salvador, cantou a potência sonora da Bahia e outros lugares do Brasil com Samba Reggae (1993) com a presença dos tambores do Olodum, óbvio. Por falar no bloco afro do Pelô, foi o Rei do Pop, Michael Jackson que veio em busca da sonoridade dos tambores e não o contrário em  “They Don’t Care About Us” (1995).  São apenas alguns exemplos de gente tão diferente que viu encanto, potência, mas a tal da axé music chegou errando rude e feio. Mas antes de falar desta escorregada da aniversariante tão terrível quanto chorume de banheiro químico no Circuito da Barra, vale conferir as homenagens citadas.

Ijexá:
Samba Reggae:
They Don’t Care About Us:

 A tal considerada música- fundadora da axé music, “Fricote”, é um problemão em relação às questões étnico-raciais baianas. Podem prestar atenção como todo mundo, nas séries de homenagens, está passando correndo por ela.  E nada contra Luís Caldas, que é um músico de habilidades mil.

Vamos à letra da canção:

Nega do cabelo duro/que não gosta de pentear/ Quando passa na Baixa do Tubo/ O Negão começa a gritar: pega ela aí/ pega ela aí/ pra que? Pra passar batom/ De que cor? De cor azul. Na boca e na porta do céu. Pega ela aí/pra que? Pra passar batom/ De que cor? De violeta? Na boca e na bochecha.

Minha gente: É um combo perverso com racismo raiz, sexismo, racismo ambiental e importunação sexual. Exagero? Vá, agora,  pegar no braço de  uma moça negra que está desfilando poderosa  em qualquer área de Salvador e recite um negócio desses para ela ouvir. Você vai descobrir rapidinho onde mora o capiroto-três-peles chupando manga e rebolando, além do significado de ser Corrimão da Estação da Lapa, Pedra do Nina Rodrigues ou Maca do HGE.

Pois não pensem que o povo ficou quieto, não. Os movimentos negros organizados do período fizeram o maior barulho. Lógico que a gente defensora da indústria fonográfica, especialmente na mídia, é que se sentiu ofendidinha. Sobrou o blá, blá, blá de que era brincadeira; que no Carnaval pode tudo. Não pode, não, amigo. Carnaval não faz a realidade do cotidiano sumir, muito menos essa nossa tragédia chamada racismo.

Mas no frigir do churrasquinho acompanhado por um Príncipe Maluco (a Vigilância Sanitária que fique na vibe de Dionísio), a conversa que a gente precisava ter era sobre onde está o protagonismo negro nessa tal de axé music, que completa 40 anos. Aliás, por mais disposição que Bell Marques tenha para ficar “segurando” ou sobre criatividade em Daniela Mercury para as performances em cima do trio, sem percussão esse negócio funciona? Mas quem leva os louros, elogios e principalmente o dinheiro? Viu? Temos coisa, Dona Coisinha e Seu Coisinha.

Finalizando mesmo, e agora é pra valer, acho que as letras de “Chame Gente” e de “Cidadão”, do maravilhoso Capinam, contam bem essa história. A primeira está bem próxima do modelo vencedor do Carnaval baiano com o protagonismo daquelas e daqueles que a indústria cultural baiana promove desde sempre. A segunda se aproxima mais da saga dessa gente que descende de quem estava lá na Embaixada Africana.

São duas composições primorosas. Veja os vídeos, mas embarque na melodia sem perder a atenção para a letra, especialmente de “Cidadão”.  O meu sonho e de muita gente, imagino, é que no Carnaval de Salvador a gente ainda possa celebrar o fim do navio negreiro, que continua operando em chagas como a exploração dos cordeiros, para que reine a galera cheia dessa gente que goza a festa mesmo sentindo as pontadas das dores da exclusão alimentada pelo racismo.   

Chame Gente:
Cidadão:
OPINIÃO

O texto que você terminou de ler apresenta ideias e opiniões da pessoa autora da coluna, que as expressa a partir de sua visão de mundo e da interpretação de fatos e dados. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal Umbu.

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