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Não dá pra enfrentar o barulho em silêncio

Mudar o comportamento das pessoas também demanda tempo. É preciso insistir, manter o assunto vivo, entregar o conteúdo de formas diferentes, ser criativo. Não é fácil, mas a mudança acontece

Foto: Prefeitura de Feira de Santana/Divulgação

Em outubro de 2021, o então governador da Bahia, Rui Costa (PT), estabeleceu regras para realização de festas tipo “paredão” no estado. Na teoria, passou a ser necessária a autorização prévia das prefeituras municipais e da Polícia Militar para promover esse tipo de festa.

Na prática, Rui pretendia proibir esse tipo de manifestação: “Não vamos permitir mais nenhuma festa de paredão na Bahia. Caso não haja autorização prévia, a PM deverá apreender os equipamentos sonoros”, disse na época o atual ministro-chefe da Casa Civil e braço direito do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O contexto até favorecia a efetivação da medida. Horas antes de Rui Costa anunciar a proibição, seis pessoas foram mortas e outras 12 ficaram feridas em um ataque durante uma festa tipo paredão em Salvador. Sem falar da pandemia da Covid-19, que ainda inspirava cuidados em relação a aglomerações.

A medida, no entanto, não deu certo. “Não pegou”, como dizem no popular. Na prática, era impossível fiscalizar o gigantesco território baiano. Fiscalizar algumas comunidades onde essas festas acontecem, sejamos sinceros, era ainda mais difícil. E eu não preciso explicar o porquê.

Treta política

Pra piorar, a própria base aliada do governo foi pra cima de Rui Costa. “O paredão é uma expressão cultural de representatividade popular”, disse na época a vereadora Marta Rodrigues (PT), irmã do atual chefe do executivo baiano, Jerônimo Rodrigues (PT).

Outros petistas também foram pra cima: “Não podemos caracterizá-la como algo errado ou ruim, por se tratar de uma festa da juventude periférica”, bradou o então presidente municipal do PT, Ademário Costa. A atual presidente da Funarte, Maria Marighella (PT), vereadora à época, comparou a medida de Rui Costa a outras proibições históricas: “O samba já foi proibido. Candomblés já foram proibidos. Vira e mexe o debate sobre o funk como cultura brasileira toma a opinião pública…”.

Depois de toda essa polêmica, cá estamos nós em 2025, no primeiro fim de semana do ano, prontos para enfrentar mais 12 meses de “manifestações culturais” que expressam de forma genuína a total falta de respeito com o cidadão que, simplesmente, quer ter direito ao silêncio do seu lar. Cidadão que não quer ser violentado pelo som que invade sua residência a qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana.

Saliento que não encaro o uso dos paredões em si como manifestação cultural, mas sim as músicas tocadas. O pagodão, assim como os já citados samba e funk, é um gênero musical produzido pelo povo, criado a partir de suas vivências e carrega consigo elementos da cultura e das interações de seus autores. No entanto, tocar qualquer que seja a música em alto volume não deveria ser lido como cultura, mas como um comportamento individualista – e até perverso – que azucrina o juízo de terceiros.

Voltando a 2021, a deputada federal Lídice da Mata (PSB) tentou contribuir com a discussão: “É preciso estabelecer um equilíbrio entre o direito daqueles que querem se divertir e daqueles que precisam trabalhar e descansar. A cidade é de todos e não de determinadas bolhas. Tanto daqueles que gostam de som alto e aglomeração quanto daqueles que se sentem incomodados”. O óbvio também precisava ser dito e Lídice disse, mas claro que ninguém debateu mais nada e ficou por isso mesmo.

Paredão é poluição sonora

Bem… os paredões são apenas a parte mais visível e gritante da poluição sonora, uma praga social que provoca inúmeros problemas de saúde. Poluição sonora é todo tipo de ruído que a afeta a nossa saúde e pode se manifestar no trânsito intenso de uma grande cidade ou no funcionamento de uma fábrica, por exemplo. Pra quem não sabe, humanos começam a perder a audição quando são expostos por períodos prolongados e repetidos a sons a partir de 85 decibéis, barulho equivalente ao ruído do liquidificador. A morte das células auditivas é irreversível.

A poluição sonora que estou tratando neste texto é o som alto no juízo dos outros, o que considero fruto da falta de educação das pessoas. Sei que muita gente qualifica isso como uma manifestação cultural em si, mas acredito que esta seja a opinião de quem mora bem longe da barulheira. Afinal, barulho no ouvido dos outros é refresco, né? Pra quem convive com o PROBLEMA, som alto é uma agressão, uma violência.

Aplicativo e operações na rua

Em maio de 2022, a Prefeitura de Salvador chegou a lançar um aplicativo para combater a poluição sonora. Se você é usuário Android, experimente pra ver. Te antecipo que ele é avaliado com uma mísera estrela na loja de aplicativos. Se você usa o sistema iOS, nem tente baixar, porque simplesmente não há versão para usuários de iPhone. Não preciso dizer mais nada, né? O app caiu em desuso e se tornou uma ferramenta inútil ao povo e para a gestão pública.

Em breve, as prefeituras municipais (em especial a de Salvador) voltarão a realizar grandes operações para combater a poluição sonora. Todo Verão é a mesma coisa. Na capital, é a Lei municipal 5.354, de 1998, que permite à prefeitura apreender equipamentos sonoros e até interditar estabelecimentos que descumpram as regras.

A principal delas está no artigo 3º da lei: “os níveis máximos de sons e ruídos, de qualquer fonte emissora e natureza, em empreendimentos ou atividades residenciais, comerciais, de serviços, institucionais, industriais ou especiais, públicas ou privadas assim como em veículos automotores são de 60 decibéis entre 22h e 7h e de 70 decibéis entre 7h e 22h”.

Mas voltando… a Prefeitura vai atuar, sim, mas não vai dar conta de 0,01% das ocorrências. Não vai dar conta porque não tem braço pra isso, porque não consegue dar conta do abuso que é a poluição sonora em todo canto dessa cidade, especialmente nos bairros periféricos, onde a convivência com o barulho muitas vezes está associada à convivência com o medo.

E a imprensa?

A imprensa, por sua vez, se limita a noticiar as tais operações de combate à poluição sonora. No máximo, concorda com o ouvinte que liga pra rádio – ao vivo – pra reclamar do problema. Uma manifestação de indignação aqui, um editorial ali… e vida que segue. Barulho no ouvido dos outros, como disse, é refresco.

Não dá pra esperar que as administrações municipais e/ou polícia deem conta. Não dá pra esperar que a imprensa faça um jornalismo cidadão e trate dessa questão com a profundidade necessária… a imprensa trocou o jornalismo pelo engajamento das massas. E as massas querem paredão, som alto nas ruas, na areia das praias, nos barcos, nas lanchas, nos carros…

É aí que entra em campo – ou deveria entrar – a tal da comunicação pública. 

Ou alguém acha que as famosas “campanhas de conscientização” não tiveram papel decisivo na mudança de comportamento do brasileiro em relação ao uso do cinto de segurança? Claro que a lei ficou mais rigorosa, a fiscalização aumentou, a multa passou a ser aplicada, mas se não houvesse uma estratégia de comunicação massiva para EDUCAR a população sobre o assunto, talvez a mudança não tivesse acontecido.

Outro exemplo parecido é o consumo de bebida alcoólica associado à direção. A comunicação foi – e ainda é – fundamental para lidar com essa questão.

Vontade política e comunicação de governo

O enfrentamento desses dois problemas no campo da comunicação demanda recurso público. Fazer campanha de conscientização pra funcionar de verdade é caro, muito caro. Mudar o comportamento das pessoas também demanda tempo. É preciso insistir, manter o assunto vivo, entregar o conteúdo de formas diferentes, ser criativo. Não é fácil, mas a mudança acontece. Depende, antes de qualquer outra coisa, de vontade política. Esse é o ponto de partida pra fazer diferente.

A publicidade institucional dos governos não pode funcionar apenas para divulgar seus feitos e realizações com objetivo de manter a opinião pública favorável. A comunicação de governo precisa também cumprir uma função social. Ela pode, e deve, contribuir para a educação e formação cidadã.

O enfrentamento da poluição sonora precisa ir além da repressão. O poder público precisa se envolver de maneira mais proativa e educativa, investindo em campanhas de conscientização que abordem não apenas o aspecto legal, mas também os impactos reais que o barulho excessivo causa na saúde física e emocional das pessoas. É preciso conscientizar, educar e mobilizar a população, trazendo o tema para o centro das discussões e promovendo mudanças efetivas de comportamento.

Esse tipo de ação não pode ser pontual ou sazonal. É preciso uma estratégia contínua, que insista na mensagem, explore diversos formatos de comunicação e alcance públicos variados, desde a juventude periférica até os formadores de opinião.

Somente com vontade política, comunicação de qualidade e um compromisso com o bem-estar coletivo poderemos equilibrar o direito ao lazer com o direito ao silêncio, transformando o que hoje é visto como um problema em uma oportunidade para promover cidadania e convivência mais harmoniosa.

OPINIÃO

O texto que você terminou de ler apresenta ideias e opiniões da pessoa autora da coluna, que as expressa a partir de sua visão de mundo e da interpretação de fatos e dados. Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal Umbu.

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