Esses dias eu estava pensando que uma das coisas mais difíceis em ser mãe é não poder morrer.
Lembro que foi o primeiro pensamento que me veio à mente quando minha gravidez foi confirmada. Eu andava na rua e, antes de atravessar a pista, parei por alguns instantes e conferi com mais precisão se estava atravessando na faixa, se não havia carro nos dois lados e, por algum instinto, atravessei a via com a mão na barriga, como se, de alguma forma, minha pequena mãozinha avisasse ao mundo que no meu corpo cabia outro alguém.
Acredito que alguns homens também tenham pensado o mesmo ao descobrirem que um filho chegaria em suas vidas. Se seguiram a metódica cultural, provavelmente eles pensaram como trabalhar mais e ganhar um bom salário para sustentar essa criança e oferecer a casa, conforto, saúde e educação que ela merece.
Mas para uma mãe, a dinâmica da imposição social a faz pensar nisso tudo e ainda há um medo enorme de morrer, não apenas quando a criança está dentro dela e depende diretamente de sua nutrição, ou após nascer e oferecer seu leite materno, mas mesmo depois que o filho/a adquire alguma independência. Tudo isso por conta da opressão estrutural do cuidado de uma criança que parece estar acoplada unicamente à responsabilidade materna.
Vou tentar explicar melhor. O pai do meu filho não foi ausente, no sentido de presença na vida do filho. Porém, ao longo da convivência, não percebia iniciativas dele para atender as necessidades completas da criança e, principalmente, planejamentos sobre suas próximas etapas. Por exemplo, quando o menino tinha 1 ano e meio, eu já estava pesquisando sobre sua educação. Pensava se seria homeschooling, se colocaria em uma escola, qual pedagogia era mais interessante, etc. O pai? Nunca mencionou algo a respeito. Apenas quando a criança tinha 3 anos de idade e depois que chamei sua atenção a respeito, ele começou a se “mexer”.
Esse tipo de situação reforçava ainda mais na minha cabeça como era impossível eu não existir. Até mesmo situações menos drásticas que a morte, como doenças leves, me deixavam irritada. Eu não conseguia descansar de um gripe, pois ficava pensando em como a rotina estava saindo do lugar porque o pai nem tinha ideia de como corresponder a ela. Ou como ele me despertava perguntando onde estavam as coisas e o que precisava ser feito naquele determinado horário. Que merda! Não podia ficar doente!
E quando a questão era saúde mental? Havia dias que não queria sair da cama. Ficava enrolando ali, ouvindo os barulhos do pai interagindo com o filho. Pensava até que estava tudo bem. Mas bastava eu achar força para levantar para perceber o caos. O menino à base de biscoito e banana – sendo que já tinha passado do horário de almoço -, sem tomar banho e sem escovar os dentes. Um dia, em especial, comecei a gritar, jogar panela na pia, esbravejando o que estava dentro de mim: “MEU DEUS, EU NÃO POSSO MORRER!”. O pai deu um pulo de susto e rapidamente começou a cuidar – de verdade – do filho.
Foi nessa época também que, estando desgastada mentalmente com o casamento, falta de dinheiro, carga mental e o peso da maternidade, passei a ter crises mais frequentes de ansiedade e pânico – com pensamentos suicidas. Cada vez que eu piorava, eu pensava como eu precisava segurar “mais um pouquinho”. Eu sentia que ia enlouquecer, ter um surto e nunca mais voltar à realidade, mas ainda assim, a vozinha não me deixava: “Eu não posso perder a cabeça, adoecer ou morrer. Esse menino precisa de mim”.
Sei que algumas pessoas podem ler essa última fala como um sinal de superação, da força do amor materno que parecia me motivar a vencer o sofrimento psíquico. Eu discordo. Não era amor. Era culpa e uma enorme solidão pela responsabilidade de cuidar de um ser humano em toda sua inteireza. Também era uma força opressora sobre a minha subjetividade. Falhar no intento de ser mãe parece definir a autoestima e integridade de uma mulher. E mesmo que a falha seja um fator fora do controle – como a morte -, parece que o que resta é carregar esse fardo até o caixão.
Decerto minhas palavras são muito duras ou intensas para serem lidas, mas considero importante desatar esses nós, pois sei que não sou a única que os carrega. Muitas outras mulheres-mães podem se identificar e é por elas que quero deixar registrada essa agonia que ainda me consome, mesmo após minha vida ter melhorado e conseguir até garantir certas seguranças materiais para o meu filho.
Acho que, de fato, meus estudos, escritos e discussões sobre maternidade real, maternidade compulsória, machismo e opressões de gênero são uma forma de dialogar com a voz que não me deixa morrer. Quero tentar convencê-la de que a morte cabe a mim, por ser tão humana e frágil quanto qualquer outra pessoa. Desejo que um dia essa voz se silencie e respeite o descanso do meu espírito quando ele completar sua jornada nesse mundo.
OPINIÃO
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