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“A cultura é aquilo que nos confere singularidade”, diz Maria Marighella

Em entrevista ao Portal Umbu, a presidente da Funarte fala sobre democracia, cultura e políticas públicas para o setor cultural

A presidente da Fundação Nacional de Artes, Maria Marighella, desembarcou em Salvador na última semana para participar da 19ª edição do Encontro Multidisciplinar em Cultura (ENECULT). O evento, realizado entre os dias 23 e 25 de agosto, é considerado um dos maiores encontros multidisciplinares em estudos de cultura do Brasil. Nesta edição, o evento buscou promover debates sobre as políticas públicas voltadas para o setor cultural. 

Quando foi convidada para assumir a Funarte, em janeiro deste ano, Marighella precisou se licenciar do seu mandato de vereadora na capital baiana, onde foi eleita pelo Partido dos Trabalhadores (PT), nas eleições municipais de 2020. Para a titular da Funarte, o convite para assumir a fundação foi um chamamento necessário para a reconstrução do Brasil. 

Sua relação com o setor cultural vem desde a graduação, isso porque a presidente da Funarte é formada em Artes Cênicas, com foco em interpretação teatral pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). 

Atuando há mais de dez anos em gestão pública, Marighella já foi coordenadora de teatro da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) e diretora de equipamentos culturais da Secretaria de Cultura da Bahia (Secult-BA). Antes de assumir a presidência da Funarte, Marighella coordenou a área de teatro da Fundação entre 2015 e 2016, durante o governo da ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff.

Em entrevista ao repórter estagiário do Portal Umbu, Jadson Luigi, na sexta-feira (25), no espaço Caixa Cultural, em Salvador, Maria Marighella falou sobre o seu retorno à Funarte após seis anos, políticas públicas culturais no Brasil e seus próximos passos à frente da instituição.

Portal Umbu: Hoje é o último dia da 19ª edição do Enecult, evento que reuniu autoridades da cultura e te trouxe de volta a Salvador. Com o tema “Culturas para o novo Brasil” para o Enecult, sob um governo que traz consigo as palavras “união e reconstrução”, qual a sua percepção a respeito da democratização da cultura, em especial em Salvador?

Recentemente nós tivemos o primeiro Encontro Nacional de Gestores do Brasil e quem fez a abertura do encontro foi a ministra Margareth Menezes. Quem encerrou a mesa de abertura foi a ministra Cármen Lúcia e ela disse que a gente fala muito em democratização da cultura, democratização do acesso, mas ela brinca que a gente precisa trazer a culturalização da democracia e eu gostei muito dessa provocação vinda de uma magistrada. Uma ministra do Supremo que tem essa ideia da culturalização da democracia, né? 

Então trazendo essas duas dimensões, a cultura – que é democrática por natureza, libertária por natureza, insurgente por natureza, que está em todos os lugares, que não precisa pedir licença a ninguém para se manifestar – e a democracia, que nós não podemos mais aceitar a democracia apenas na sua dimensão formal, ainda que importante. A democracia é feita nas suas formalidades pelas instituições.

Então, primeiro que a democracia brasileira nunca esteve tanto em pauta, inclusive a palavra democracia, eu acho que a gente viveu recentemente a vitória da democracia, ou seja, uma vitória do povo brasileiro contra o autoritarismo, as brutalidades e violências.

Mas esse não pode ser um gesto isolado, nem apenas formal e nem vazio de sentido, então a cultura, justamente, essa dimensão insurgente, libertária e emancipadora. Ela [a cultura], necessariamente deve orientar um projeto de país, de civilização, de sociedade e eu acho que é isso que nos mobiliza, hoje, a ocuparmos a gestão pública em espaços de decisão.

A cultura está em todo lugar é tudo aquilo que fazemos. Aquilo que nos confere identidade, singularidade, também aquilo que nos confere comunidade. A cultura é aquilo que nos confere singularidade, ou seja, aquilo que nos traz sujeitos, mas também é o sujeito articulado à sua comunidade, ao seu ethos coletivo. Isso tem uma força gigante de percepção social é singular e coletivo, “eu sou porque nós somos”. Quem faz esse Ubuntu é a cultura, então tem uma força, um poder gigante e a gente precisa dizer, como diz o Antônio Pitanga, “de onde eu vim, não tinha nada, mas nesse nada tinha Cultura.”

O que realmente não está em todo lugar não é a cultura, são as políticas públicas para cultura que transformam essa dimensão, justamente libertária, em direito, ou seja, o fortalecimento da democracia a partir da dimensão do direito. Então fica muito evidente nessa quadra ou quina, nessa “encruzilhada Brasil” em que primeiro precisamos tratar a cultura em outro lugar. Não nos últimos orçamentos, nas últimas páginas dos planejamentos, mas no centro de um debate de sociedade. Mas também é retirando dos espaços de concentração, aqueles espaços de legitimação que apenas legitimam parte da sociedade que é, justamente, quem está à frente das instituições e dos poderes.

Então o que nós estamos vivendo é uma descentralização, é uma diversidade, é uma reivindicação de políticas que transformem essa riqueza num bem coletivo em algo distribuível em algo distributivo em algo mobilizador de direitos, não só naquilo que a gente vem falando muito na dimensão econômica de recuperação, mas sobretudo simbólica do que nós somos das nossas identidades e também na produção e promoção de cidadania.

Portal Umbu: Como foi para a senhora a experiência de licenciar o seu mandato como vereadora de Salvador, onde atuava no legislativo e retornar para a Funarte?

Dificílimo, não é algo simples. Eu fui chamada, é um chamado. Você sabe que o presidente Lula veio a Salvador em 2021 e eu entreguei para ele, assim que ele começaram as jornadas de debate sobre o Brasil, ele esteve aqui na Bahia na Senzala do Barro Preto, em encontro com os movimentos negros. Foi um encontro muito bonito e, antes, nós tivemos um pequeno encontro, antes do ato, e eu dei um quadro que dizia assim: “arte dá trabalho”. 

Então, assumimos a tarefa. Agora, temos uma tarefa nacional que é de reposicionamento do lugar da cultura, retomada e refundação do Ministério da Cultura.

Esse Ministério que é símbolo da redemocratização do Brasil. O Ministério da Cultura é de 1985 e, portanto, é um marco do que representaram os artistas, fazedores de cultura, intelectuais na luta contra a ditadura civil-militar e acho que esse Ministério de 2023, renascido por meio do governo Lula, ele tem essa dimensão desse símbolo revivido e é impossível não aderir a esse chamado.

Me somar a essas pessoas que tem um papel de devolver a dignidade para a cultura, mas sobretudo a dignidade ao país através da sua dimensão cultural, ainda que isso não seja uma equação simples.

Eu não renunciei ao cargo, eu me licenciei do cargo e quando o vereador ou vereadora se licencia, tem a prerrogativa de continuar tramitando seus projetos de lei. Na última semana, aprovamos dois projetos de lei, um no contexto da Agenda Marielle Franco, porque foi um compromisso que nós fizemos de manter viva a Agenda Marielle Franco. Somos um conjunto de parlamentares pelo Brasil que se comprometeram na difusão da Agenda Marielle Franco e aqui nós apresentamos os projetos de Marielle que não tinham ainda sido apresentados e um deles foi aprovado. Essa matéria trata da fixação de cartazes que visibilizam os direitos das mulheres vítimas de violência de gênero. O outro projeto aprovado trata de prestar assessoria técnica às cooperativas que fazem gestão de resíduos sólidos. 

Portal Umbu: 2016 foi o ano em que a senhora deixou a Funarte/MinC, esse também foi o ano do impeachment da presidente Dilma Rousseff e o momento em que o conservadorismo ganhava musculatura no Brasil. Como a senhora se sentiu ao deixar o ministério naquele momento?

Para mim, o golpe se deu numa cena que é o dia 17 de abril de 2016 que é a cena da admissibilidade do impeachment na Câmara dos Deputados. E é o momento em que o, depois presidente, mas então deputado Bolsonaro dedica o voto dele a Carlos Alberto Brilhante Ustra. E ele sai daquela sessão absolutamente ileso. Naquele momento, num espaço de intimidade, num espaço privado, fui tomada de um choro porque o Brasil, primeiro não contou sua história, não recontou sua história, não contou à sua gente quem foi Ustra. 

Por isso eu disse que todos os dias do governo Bolsonaro foram dias de indignação, mas em algum lugar do inconsciente coletivo, aquela figura ela já havia incidido. Então é óbvio, que aquilo que aconteceu depois já tinha sua gênese nas prévias do golpe, na própria cena do golpe e nós sabíamos que tínhamos que ser rápidos, ágeis, em denunciar, combater, estancar.

Acho que, de algum modo, a cena quando o presidente Lula sobe a rampa por força do poder do povo e recebe a faixa por meio do povo e não pelo seu antecessor indigno, eu acho que o povo brasileiro fez uma demonstração de que lado o país está, de que lado povo brasileiro está e agora a gente precisa transformar essa essa cena num ato de justiça social, de equidade de um futuro mais justo para o Brasil.

Portal Umbu: Neste período de conservadorismo que o Brasil enfrentou, a Lei Rouanet foi bastante demonizada. Quais são os caminhos que o MinC e a Funarte irão propor para desconstruir essa noção deturpada sobre a lei?

No Brasil, a renúncia fiscal à Lei Rouanet é a política pública mais longeva e não a ideal, ela está longe de ser ideal. Ela está longe de ser a definitiva, mas é a política pública mais longeva do financiamento e fomento à cultura no Brasil.

Então, eles usaram justamente os símbolos mais longevos para ataque, ou seja, é um recurso. Aquilo que é mais conhecido para atacar artistas e a cultura como dimensão promotora de bens a sociedade.

Bom, o que é que nós fizemos imediatamente, primeiro recontar o que é a Lei Rouanet, é uma lei com mais de 30 anos, não é criada nos governos petistas, não é criada pela esquerda. É um mecanismo de renúncia, que tem no espaço do Ministério da Cultura uma tramitação com lisura. 70% de tudo que é investido na Rouanet, passa pela Funarte, porque 70% disso estão nas artes, seja dança, música, teatro, circo, festivais. 

Então nós precisamos, primeiro, recuperar os instrumentos de participação. Trazer de volta o Conselho Nacional de incentivo cultural (CNIC), recuperar a comunicação, destravar mecanismos, destravar recursos que estavam em conta, feitos de maneira republicana mas bloqueados de modo a perseguir, censurar. Aquilo que a gente chama censura de estado usando o recurso da burocracia para perseguir projetos.

Portal Umbu: Atualmente, a Câmara dos Deputados está discutindo a remuneração por parte das big techs aos artistas. Gostaria que a senhora falasse um pouco da dificuldade dos artistas em obter remuneração no ambiente digital.

Acho que é o debate do momento, a gente está falando de direitos autorais, de direitos conexos, a gente está falando que a cultura brasileira precisa ser remunerada pelo seu fazer. Então regular e garantir as Big Techs, mais as grandes corporações, porque agora a disputa é que as grandes estão se enfrentando. 

Então são interesses complexos num tema central. Nós defendemos primeiro os direitos autorais, precisamos garantir a fiscalização desse ambiente e a promoção de mediação, ou seja, não pode haver esse ambiente absolutamente sem lei, sem mediação e sem monitoramento.

Acho que é um grande debate. Importante que toda a comunidade cultural se mobilize, óbvio que a princípio se mobilizam aparentemente os grandes nomes, mas nós defendemos que toda a comunidade cultural deve se envolver porque direito autoral não é apenas para os grandes. 

É óbvio que nós temos os grandes que promovem os direitos autorais, mas a gente tá falando de direitos de toda uma população.

Estamos acompanhando o debate, por meio desta Secretaria dos Direitos Autorais. Por meio dessa diretoria, né dos direitos autorais e intelectuais. Mas é um tema que deve mobilizar toda a comunidade cultural nessa agenda de produção de direitos de distribuição e de proteção à cultura e às artes brasileiras.

Portal Umbu: A pandemia foi um período delicado para a produção cultural, o fazer artístico e iniciativas voltadas para o segmento, sobretudo por conta de decisões tomadas pelo último governo. Leis como Aldir Blanc e Paulo Gustavo foram fundamentais para amparar e ampliar trabalhadores do setor e seus projetos. Pensando nesse quadro e suas implicações, do seu ponto de vista, quanto ainda falta para que tenhamos, enquanto sociedade, a compreensão da cultura como um direito e um recurso que precisa ser acessível?

Foi um período, talvez o mais difícil da história do país, ou pelo menos desse período de redemocratização do país. Não me lembro de termos atravessado um período tão violento em que os nossos passaram fome, passaram privações severas. Sem horizontes de futuro e políticas públicas que abraçassem.

Então eu não sei responder quanto tempo mais, mas acho que nós vivemos uma vitória muito importante, e reputo, não só o movimento da cultura, mas da sociedade que viveu e superou também através da cultura. Nós só conseguimos nos manter em casa, porque tivemos a cultura como um laço de conexão, as lives, a solidariedade, com manifestação. Eu penso que ao lado de um momento tão brutal tivemos uma vitória, eu me lembro que nos grupos de zap de família as pessoas pediam a aprovação da Lei Aldir Blanc. 

Eu acho que nós saímos muito fortalecidos, como pauta, como agenda. Isso se revelou inclusive na no debate eleitoral quando o presidente Lula pede para falar de cultura, eu não me lembrava de um debate eleitoral presidencial em que um candidato à presidência tivesse pedido para falar de cultura. A cultura entrou na casa das pessoas. Ela virou um componente do desejo social e coletivo, então é para a universalização dessa ideia ou desse direito, isso é processo. Eu não saberia responder, mas tenho convicção de que foi justamente a crise, aquilo que nos encarcerou, isolou, aniquilou, que trouxe um passivo de uma crise também subjetiva. Ele também nos fortaleceu enquanto comunidade para reivindicação de algo tão estruturante para a feição de um país.

Portal Umbu: Em julho, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem que mostra a situação de degradação da sede da Funarte em São Paulo. Quais ações a Fundação tem tomado para revitalizar o espaço?

A sede de São Paulo, da Funarte, é uma coisa, você entra lá, você tem vontade. Porque é óbvio, a Folha fez uma importante matéria sobre as infraestruturas, mas é um lugar de pura vida a sede da Funarte. 

O complexo Funarte São Paulo é uma casa histórica no centro de São Paulo, muito perto do que se chama Cracolândia, muito perto de um ponto muito sensível da cidade de São Paulo e se torna um ponto muito importante da conexão e afetividade da cidade com o centro. Então, existe ali uma população de rua que é acolhida, uma população que vai ver os espetáculos. Tem muita coisa sendo construída, grupos ocupando os espaços.

Então, é algo que precisa de recuperação, sobretudo de infraestrutura. Está muito vivo do ponto de vista da sua ocupação, da sua função social, e hoje saiu “Funarte Portas Abertas”. Só para dizer que não há um abandono do ponto de vista da ocupação e da apresentação de trabalhos nesse lugar. 

A Funarte São Paulo será a sede do novo escritório do Ministério da Cultura. Ou seja, nós temos alguns comitês, então todas as iniciativas, contratos para requalificação dos espaços, um chamamento de um contrato para as obras emergenciais, para requalificação. Todos esses processos internos administrativos estão sendo travados, tomados ao lado de todos os mecanismos, primeiro para formalizar a participação desses artistas que ocupam, desses grupos que ocupam.

Agora com “Funarte Portas Abertas” é regularizar, digamos é como será a ocupação republicana, transparente desse prédio ele é um prédio muito importante para nós. Espaço onde Itamar Assumpção lançou sua carreira, então é uma história muito vibrante.

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João
João
1 year ago

Fantástica essa entrevista. O UMBU se consolidando ainda mais como um grande veículo de divulgação cultural e artística. Parabéns.

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