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201 anos de Independência do Brasil na Bahia: População LGBTQIA+ representa expressão popular que marcou a História 

Pesquisador Vinicius Zacarias falou sobre como gênero, sexualidade e poder social se encontram na data cívica

Foto: Divulgação/Documentário “Balizando 2 de Julho”

Uma das datas mais importantes do calendário baiano é o dia da Independência do Brasil na Bahia, celebrado neste 2 de julho, que este ano, completa 201 anos. Uma das principais manifestações dessa festividade é o desfile cívico, onde bandas, fanfarras e seus balizadores marcam presença no cortejo e rememoram a luta histórica do estado pela liberação do país contra o domínio português.

Entre todos os simbolismos do poder popular e o resgate de figuras fundamentais como Maria Quitéria, Maria Felipa, Joana Angélica e os Caboclos, a data cívica é rememorada ainda pela representatividade LGBTQIAPN+ nos desfiles. O tema é estudado pelo antropólogo Vinicius Zacarias, que pesquisa patrimônio, memória e identidades interseccionados com as dimensões de raça, gênero e sexualidade.

Doutorando em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), Zacarias é autor dos artigos “Notas Etnográficas sobre Homens Negros Balizadores de Fanfarra em Salvador” e “Os viados de fanfarra e a fechação regulada: o jogo de gênero e raça no campeonato baiano”. Em entrevista ao Portal Umbu, o pesquisador falou que o interesse foi pesquisar a manifestação cultural, compreendida como patrimônio imaterial da Bahia e que tivesse relação com conflitos ligados à sexualidade e à raça. O tema surgiu ao se atentar para os balizadores de fanfarra em Cachoeira e São Félix, no Recôncavo Baiano.

“Eu fui de fanfarra, mas não como balizador. Eu fui tocador de bumbo”, contou, explicando que o instrumento exigia que seus operadores fossem altos, fortes e tivessem uma performance muito masculina. “Naquela época do ensino médio, eu ainda não era assumidamente gay, nem pensava em ser ativista, como eu sou hoje. Eu tive que me camuflar nesses espaços sem abrir mão de participar de grupos culturais, musicais e teatrais”, explicou.

“Aquilo, de alguma maneira, ficou dentro do meu subconsciente. Eu falei ‘eu preciso pesquisar sobre isso’, porque dentro de outras coisas que são relevantes nas Ciências Sociais, o campo vai apresentando pra gente também esse desejo íntimo, de uma construção da minha própria identidade, dos meus próprios conflitos”, contou.

Sobre como gênero e sexualidade encontram espaço na data cívica do 2 de Julho, Vinicius Zacarias conta: “Eu utilizo da antropologia da performance, que é uma vertente da antropologia que trata sobre aspectos desse âmbito plástico, mas ao mesmo tempo político enraizado de significados até mesmo revolucionários”.

“A performance não é trivial. Não é apenas um espetáculo cênico ou ela não se reverbera apenas no momento do ápice, do apoteótico, do propriamente dito. A performance é um complexo de significados ali ritualizados, onde a sociedade tem a possibilidade de poder se revelar desses preceitos corpóreos, dessa maneira de se falar, de se gesticular, de celebrar,  de se fazer música, então são revelações da sociedade, que vamos dando indícios do que ela é de maneira fundamental”, apontou o pesquisador.

“O desfile cívico é um transmissor de mensagem que não é verbal, mas é performático.  Você está passando uma mensagem de um Estado-nação forte onde nós temos um investimento muito grande na força bélica, a força masculina. Essa força é normativa, é a ideia de força ligada a um homem, a dominação do homem, o poderio político, a educação formal, que é uma educação absolutamente disciplinar aos moldes do um civismo de um momento nacionalista. Quando você tem um desfile cívico do Dois de Julho, a própria data já é uma subversão a todas essas normatizações.”

Vinicius relembrou que a data magna é o início da Independência do Brasil e que “o nacionalismo baiano é muito forte na nossa identidade”. “Ele já foi uma manifestação cívica de protesto. As pessoas iam para a rua para poder ver o desfile, mas também protestar e festejar. Esse é o paradoxo baiano, que é o estado que mais tem desigualdade social, mas o estado que mais celebra a vida, uma vida precária. É uma manifestação que mistura aspectos, por exemplo, religiosos, cívicos, carnavalescos. É o 2 de julho da Bahia, por isso que ele é patrimônio imaterial do Estado, considerado através de um decreto”.

Vinicius Zacarias | Foto: Divulgação/Documentário “Balizando 2 de Julho”

“Gênero e civismo estão totalmente relacionados. Gênero, na verdade, é um mecanismo de controle, um é um dispositivo de controle social, uma biopolítica instituída no ocidente. Então é muito mais do que ser homem ou ser mulher, mas é tudo que faz com que, hoje, nós entendamos que existem só essas duas possibilidades de existência corpórea física de um ser humano. E a binaridade é justamente isso, essa limitação que nós temos de compreensão de uma existência que foi, de fato, promulgada pelo dispositivo do que nós consideramos gênero”, apontou Vinicius.

Em “Os viados de fanfarra e a fechação regulada: o jogo de gênero e raça no campeonato baiano”, Vinicius Zacarias traz o caso de Melyna Santos, uma mulher trans que foi vítima de transfobia e impedida de desfilar. Em 2018, Melyna integrou a fanfarra Banda Marcial Recomeçar de Feira de Santana (BAMARE), após intervenção do Grupo Gay da Bahia (GGB). Uma triste releitura da opressão de gênero vivida pela heroína da independência Maria Quitéria.

“É um exemplo de como o campo não é um espaço de aceitação, de acolhimento para a comunidade LGBTQIAPN+ nas corporações e nem mesmo na organização dos desfiles cívicos. Até porque quem organiza os discípulos são prefeituras, através das escolas municipais e são espaços disciplinares que promovem e defendem esse modelo heteronormativo de trabalho, uma ideia colonial da educação, desprezando outras formas de expressão, de saber, de fazer. O caso de Melyna é um exemplo da resistência”, explicitou.

“A gente, dentro das corporações, por exemplo, teve alguns avanços. As corporações, hoje, tendem a aceitar pessoas transexuais, mas não foi fácil e, ainda hoje, há muito preconceito também, há muito estigma”, pontuou. Ao Portal Umbu, Zacarias falou ainda sobre a “resistência crítica do objeto”, declarando que o Dois de Julho é um movimento formado por minorias em suas origem e de protagonismo negro e indígena. “Somos nós, agora, essa nova geração, na verdade, resistindo, ressignificando, lutando por uma nova independência. É muita analogia, é muito simbólico assim, por isso que antropologia é a ciência que melhor explica esse fenômeno”.

Para a data de hoje, Vinicius revelou que, junto com uma equipe de pesquisadores e balizadores de fanfara foi contemplado com o edital da lei Paulo Gustavo Bahia, no segmento de inventário de conhecimento de bens associados ao Dois de Julho. “Nós colocamos lá a performance dos viados de fanfarra no Beco da Fechação, que é o Beco do Rosário, aquele trecho no perímetro da Avenida Sete, onde acontece a apoteose das performances e o lugar que sociabilidade LGBT durante a cortejo Cívico do Dois de Julho de Salvador”. “A gente vai fazer essa pesquisa etnográfica para trazer mais dados”, contou. O trabalho da equipe de pesquisadores vai gerar um documentário que ficará disponível no Instagram, em data ainda não anunciada.

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